terça-feira, 8 de junho de 2021

Uma carta para mim próprio em 2019 ou como os Jogos de Tabuleiro me marcaram


Mais fotografias em: Micael Sousa (@micaelssousa) • fotos e vídeos do Instagram

Olá Nuno, 

Daqui é o Nuno de 2021. Chegaste a casa com o teu (meu) filho e ele aprendeu a jogar Magic por acaso em casa de um amigo. Tu já viste este jogo e tens um baralho algures num armário. 

Sim, o armário que tem o Party Co, o Monopólio, o Xadrez, o Uno, o Scrabble. 

São jogos que tens parados não é? São sempre a mesma coisa (ok menos o Xadrez). 

E se eu te disser que desde que jogaste Catan em 2001, muito mudou?

Posso dizer-te que somos a mesma pessoa mas ao mesmo tempo somos diferentes. 

Na tua vida frenética, estás a tentar encontrar um hobby que te acalme mas desafie ao teu ritmo. 

Estás à procura de algo que possas ter em comum com o teu filho. Estás à procura de uma distração construtiva. 

Bem-vindo ao mundo dos Jogos de Tabuleiro. Nos próximos dois anos vais viver uma grande aventura, desculpa, muitas aventuras. Deixa-me ajudar-te

Vais começar com jogos mais simples, rápidos, tu adoras jogos de cartas. Além do Magic (que não é assim tão simples) vais começar na construção de decks: Star Realms, Dominion. 

Vais gostar de alguns “Push your Luck” também jogos pequenos como o Port Royal ou o Oh My Goods. Vais aperceber-te que as cartas podem ter muitas funções, e vais gostar disso. 

Vais conhecer os dados como nunca conheceste, em que ser o maior resultado não significa ser melhor: Castles of Burgundy, Grand Austria Hotel, La Granja e o controverso Marco Polo.

Vais começar a decidir como alocar recursos com a beleza do Everdell, a dureza de um Agrícola, ou a simplicidade de um Walnut Grove

E tu, que adoravas o Civilization no teu computador, vais apreciar o Nations, e vais demorar muito tempo a jogar o Through the Ages. Vale a pena.

Vais saber que nem sempre há um vencedor e um perdedor. Há jogos cooperativos: O Hanabi, o Magic Maze, A tripulação ou o Marvel Card Game. Todos podem perder, mas a sensação de ganhar como um todo é fenomenal. 

Há artes magistrais, que te transportam para o tabuleiro, como o já mencionado Everdell ou o Ruins of Arnak, ou mesmo o Marco Polo. 

Vais ficar parado a decidir o que fazer num Ora et Labora. Só tem 41 edifícios mas tem tanto para decidir. 

Vais rir-te a juntar fações como os Zombies e os Piratas no Smashup, ou vais adormecer a ler as regras do Terra Mystica. 

Vais aprender regras num dia que não achavas que fosses conseguir. Vais falar de forma próxima com desconhecidos, vais ganhar e vais perder por poucos. Vais mostrar novos mundos ao teu filho, vais ficar a olhar para ele a raciocinar em voz alta. 

Eu sei que ao dizer estes nomes, podes não sentir nada por agora, mas vais sentir. Desculpa-me.

Vais ver vídeos de outras pessoas que partilham a paixão por este mundo e que, de forma altruísta, o fazem muito bem. Vais fazê-lo depois de dias difíceis e vão ajudar-te a “desligar”.

Vais ter respostas dos autores dos jogos às tuas dúvidas, vais falar com pessoas do outro lado do mundo. 

Vais arrumar os componentes ordenadamente, tu que és um desarrumado. 

Vais ficar a olhar para as caixas, vais chegar às lojas ou Associações e olhar para os armários como olhas para os teus amados livros.

Aproveita a viagem. Cada momento. Cá estarei para te receber, não no fim mas em mais uma etapa.


autor: Nuno Seleiro

quarta-feira, 17 de março de 2021

Três anos a arriscar o “cú” no Youtube

Passaram 3 anos a correr, como quem sai disparado para entrar numa casa de banho. E quem mais sofreu foi aqui este espaço, tais eram outras aflições. Quase todo o tempo disponível que tinha para criar conteúdos foi sugado pelo formato vídeo. Sou youtuber há 3 anos! Parece estranho, mas é verdade. Podem ver aqui, é mesmo um facto que consta dos anais digitais: www.youtube.com/c/jogosnotabuleiro

Eu, um gajo até tímido um youtuber? Um gajo que e atrapalhava todo a falar em público e em dizer mais que três palavras seguidas! Se calhar foi por isso mesmo que a coisa me tem motivado. Meter-me a produzir conteúdos vídeo foi como atirar-me para uma tempestade somente com uma boia. Atirar-me sem pensar nos riscos efetivos.

O perigo era constante, mas aprendi a nadar à força. Aprendi a nadar e a digerir. Aliás, o perigo é permanente, porque é perigoso falar em total liberdade quando se usa de alguns estilismos. Nesta ditadura do politicamente correto e da ânsia do cancelamento instantâneo só quem não tem cú é que não tem medo. E eu tenho um, como a esmagadora maioria de quem vai obrando por aí. Se calhar não conhecem esta expressão do “cú”, mas pronto, é pelo uma expressão conhecida aqui da minha zona. Não que seja do “cú”, mas conhecida na zona onde vivo. E com isto já arrisquei bastante o meu “cú”, ainda por cima eu que era tão ciente dele. Que seja uma ode à liberdade de dizer repetidamente “cú”, com tudo o que isso acarreta e liberta de simbolismo. 

Não sei se me fiquei apenas pela natação de sobrevivência neste mundo de constantes vagas de vídeo. Também mergulhei, para o bem e para o mal. Foi aprender do zero. Tentar comunicar melhor, ou comunicar efetivamente e de facto. Tentar passar as ideias para o concreto. Errar e aprender, tal como nos jogos, embora a exposição e o perigo existam. Lá está, o “cú” está sempre em risco. E por vezes, um conteúdo deslocado, mal digerido pode cheirar muito mal. É preciso engolir alguns orgulhos e ter capacidade de digerir certas criticas, mas depois, com a devida preparação, tudo acaba por sair, ficando somente os nutritivos ensinamentos daa experiência interativa.

Mas foi só isso que ganhei? Uma melhor capacidade de desencaixe e escoamento de ideias? Não, ganhei rede social real. Conheci imensas pessoas, outros “cús” bem mais formosos que o meu. Foi uma forma de poder participar em múltiplos projetos relacionados com jogos, de meter o “cú” a novos trabalhos. Hoje estou ligado a alguns projetos de "serious games", e acredito que todos os conteúdos que criei – especialmente os vídeos – foram uteis nesse caminho das pedras, quiçá das pedras dos rins, daquelas que doem a sair. 

Falar de “cús” e seus temores é uma coisa séria. Falar de jogos também, embora mais incerto. Tudo é sério e não sério, mas nem tudo é divertido. Até porque “cús” há muitos e cada um tem o seu poder de encaixe. Consciente disso tentarei continuar a obrar, mas sem mostrar tudo, pois há certas coisas que nem eu quero ouvir falar, quanto mais ver. 

autor: Micael Sousa


sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

Efeitos parasitários nos jogos de tabuleiro de massas e de hobby

Este ano que terminou foi um ano atípico, todos sabemos. Foi igualmente estranho para o mundo dos jogos de tabuleiro. Devido às restrições algumas pessoas passaram a jogar mais e outras muito menos. Alguns dos ditos “gamers” de hobby tiveram de reinventar hábitos. Os encontros públicos deixaram de poder acontecer tal como de hábito. Muitos de nós tivemos de jogar mais em modo solo – no meu caso era um modo que desprezava completamente. Outros dedicaram-se às plataformas online de emulação de jogos de tabuleiro – confesso que estas não me seduziram. Alguns conseguiram jogar mais em família, com as suas respetivas companheiras e companheiros, inventando também formas de jogar em casa em encontros mais restritos, alguns com máscaras e gel desinfetante à mão. 

Surgiram notícias de que, mesmo entre os jogadores casuais ou pessoas que não jogavam há muito tempo, houve uma procura maior por jogos de tabuleiro. Foi uma resposta à necessidade de encontrar atividades alternativas para toda a família ou para fazer com quem partilhasse a mesma casa ou convivesse num círculo social mais restrito. Mas como, muito provavelmente, estas pessoas apenas acederam aos jogos que já conheciam da infância. É normal, vamos sempre seguir ou comprar o conhecemos, especialmente porque entra em jogo também o efeito de nostalgia. Dificilmente alguém arrisca gastar dezenas de euros numa coisa que não conhece e muito menos numa que exige um processo de aprendizagem considerável. Vivemos na era do imediato, quer queríamos quer não. 



O que me pareceu ser realmente desconfortável neste fenómeno foi o modo como a coisa foi publicitada ou manipulada. Estava já no ar, mesmo antes do Covid-19, a noção de que havia um ressurgimento de interesse pelos jogos de tabuleiro. Mas, muitas vezes, a mensagem passava para o grande público como um efeito de nostalgia, do voltar aos jogos do passado. Muitas pessoas podem ter voltado aos jogos de infância, mas sabemos que não são esses jogos que alimentam as feiras internacionais, os conteúdos criados sobre o hobby e até novas profissões e formas de usar os jogos em múltiplos contextos. Parece-me que as empresas que produzem e distribuem os jogos do mercado de massas, aqueles da nossa infância que todas as pessoas conhecem, mas agora replicados em formas supostamente mais moderna mas que no fundo são a mesma coisa há décadas, se aproveitaram do fenómeno de crescimento dos jogos de hobby para insistir com a venda dos jogos do costume.

Isto pode ter efeitos positivos se as pessoas que voltam aos jogos antigos se aperceberem que existem outros. Mas se quem voltar a estes jogos ficar só por aí, pode ficar com uma ideia muito distorcida sobre o que tem sido o ressurgimento do fascínio de jogar jogos analógicos e sobre as inovações associadas ao desenvolvimento destes produtos criativos de autor. Pensar que o hobby dos jogos de tabuleiro se resume a jogar os jogos de infância é uma visão perigosamente fácil de se implementar. Vai surgir frustração e são imensos potenciais jogadores que perdemos. Estas pessoas podem ficar com a ideia que todos os jogos de tabuleiro consistem em lançar dados para andar numa barra de progressão ou às voltas, que se trata apenas de mecânicas alectórias que determinam os resultados, as casas onde calhamos e as cartas disponíveis para jogar. Casos em que é o jogo que nos joga e não o inverso. Podem pensar que são infantis ou que têm de perder uma noite inteira com um jogo do qual podem ser eliminados logo no início. Podem pensar que têm de ler uma enciclopédia antes de os poder jogar, que vão estão num duelo a ter de pensar 50 jogadas à frente ou a lançar um dado que determina o desfecho de uma batalha sem qualquer outro efeito que o possa influenciar. Os jogos de tabuleiro modernos podem ter isto, mas normalmente têm muito mais ou implementam novas formas de gerar experiências que nos marcam. 

Já se percebeu que receio este efeito parasitário dos jogos do mercado de massas, mas as editoras e os jogadores dos jogos de hobby têm alguma responsabilidade também nisto? Até que ponto os jogos de hobby não se têm colado também a estes jogos que uma grande maioria de nós despreza? Ficam as dúvidas no ar… quem sabe até surgir uma vacina que nos salve o hobby. 


autor: Micael Sousa
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