sexta-feira, 24 de agosto de 2018

Não percebo nada desse jogo - Opinião por Micael Sousa

Se jogam publicamente jogos de tabuleiro modernos é impossível não terem ouvido isto: "Não percebo nada desse jogo". Isto já me aconteceu tantas vezes, dito por tantas pessoas diferentes, que tem de haver um padrão. Esta exclamação seria perfeitamente normal se não fosse quase sempre dita por alguém a quem nunca foi explicado o jogo e não parece estar muito interessado em aprender.



Sempre me gerou espanto esta expressão. Mas afinal o que querem dizer com isto? Será que pensavam ser possível olhar durante uns segundos para o jogo e ficar a perceber como se joga? Significa que não querem aprender e desistir antes sequer de tentar? Querem transformar e fazer de nós - as pessoas que estão a jogar - uma espécie de elite sobre a qual se vai tecer escarnio? 

Depois irrita-me o passo seguinte ainda mais. Quando me ofereço então para explicar, mesmo que seja sumariamente, dizem que não querem aprender. Parece que essa reação serve apenas para continuarem a dizer "não percebo nada desse jogo" para sempre. O que quer dizer: "sou continuar a moer-te a paciência".

Estará isto relacionado com o conceito de racionalidade ignorante, uma espécie de ignorância consciente e deliberada. Esse fenómeno tem sido estudado para alguns sociólogos e psicólogos, sendo algo bastante corrente nas sociedades contemporâneas, quando deliberadamente preferimos ficar na ignorância e não gastar o nosso tempo numa atividade que exige uma aprendizagem considerável. Uma esmagadora percentagem das pessoas prefere atividades mais imediatas, que produzam efeitos e resultados rápidos. Isto acontece em quase todas as atividades humanos, mas muito no lazer e imensamente nos jogos de tabuleiro. Talvez sejam efeitos do pós-modernismo materializado na elevação do hedonismo, que se manifesta tanto nos que se recusam a aprender e jogar estes jogos, tal como manifestações inversas naqueles que apaixonadamente estão sempre a querer conhecer e experimentar novos jogos - como eu.

Para um apreciador de jogos de tabuleiro modernos, especialmente eurogames, este fenómeno é antagónico ao seu modo de viver os jogos. Para um eurogamer é a novidade de uma mecânica, a surpresa de um tema transformado numa abstração, o teste de uma nova estratégia e o desafio tático de ter tentado retirar o melhor daquela situação imprevisível, que mais interesse geram na exposição aos jogos. 

Imagino que não seja o único a sentir isto.

sexta-feira, 17 de agosto de 2018

Os Jogos de tabuleiro no formato digital fazem sentido? – Opinião por Micael Sousa

Este assunto andava na gaveta há algum tempo. Tenho pensado bastante nele. Enquanto isso, mais e mais jogos são adaptados para consolas, mas especialmente para aplicações de telemóvel. 


Vou começar pela minha história pessoal, quer serve de enquadramento e fundamentação da minha opinião sobre este assunto. Antigamente, há mais de 10 anos, eu jogava mesmo muito jogos digitais. Jogava com amigos first person shooters (FPS), Role Playing games (RPG) em modo solitário ou online. Mas delirava com jogos de estratégia, especialmente os títulos que se dedicavam ao planeamento, construção criativa, gestão e afins. De longe os meus preferidos eram as séries Civilitazation e Total War, nas vertentes do mapa político, mas também da tática militar em campo de batalha. Gastei imensas horas da minha vida nestes jogos, fazendo parte da minha formação. Sim, há que admitir isso, esses jogos desenvolviam competências que hoje consigo identificar. Não foi por acaso que me formei em engenharia, depois em história e agora estou a fazer PhD em planeamento. Nem é de estranhar a minha ligação ao exercício da política ativa, agora de uma forma menos intensa. Mas quando comecei a trabalhar, comecei a querer desligar o computador nas minhas poucas horas livres, também porque grande parte dos estudos que fiz, em simultâneo com o trabalho formal, obrigavam ao uso intensivo de computadores. 

À medida que fui conhecendo os novos jogos de tabuleiro modernos percebi que podia transferir o meu gosto por jogos e estratégia, simulações de mundos conceptuais, poderia ser transformado numa atividade social. Começou por ser uma atividade de um grupo de amigos restrito, onde se incluía a minha atual esposa. Depois foi possível usar estes jogos em algumas atividades familiares mais alargadas. Depois veio o projeto dos Boardgamers de Leria em 2014 e a coisa explodiu, passando a existir noutros níveis que não imaginava, de considerável seriedade. 

Então fará sentido andar a jogar jogos originalmente produzidos para serem analógicos, com peças físicas, em formato digital? Não! Nem pensar. Para mim não. Se quisesse jogar jogos digitais não seriam as adaptações de jogos de tabuleiro que iria jogar. Há tantos outros tão melhores e mais bem concebidos, pensados de raiz para esse formato, que me parece estranho preteri-los em função de outros que são apenas adaptações. Para mim, grande parte do interesse e a beleza dos jogos de tabuleiro consiste em serem físicos, possibilitarem momentos presenciais analógicos, cara a cara, com toda a riqueza humana que isso permite. 

Percebo perfeitamente que as editoras queiram maximizar os seus produtos com estas novas plataformas. Percebo que possa ser uma forma de divulgar os jogos de tabuleiro para aqueles que apenas jogam no formato digital. Percebo que é a oportunidade para jogar rapidamente alguns destes jogos, sem ter e reunir um grupo e andar com as caixas atrás. Percebo que possa ser uma forma de treinar estratégias e até dominar as regras de um determinado jogo. No entanto, não me parece ser minimamente interessante, porque não necessito de explorar nenhuma dessas supostas oportunidades que as adaptações digitais dos jogos.

Admito poder ser radical, mas não me fascina minimamente os jogos de tabuleiro digitais. E vocês, qual a vossa opinião?
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