sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

Efeitos parasitários nos jogos de tabuleiro de massas e de hobby

Este ano que terminou foi um ano atípico, todos sabemos. Foi igualmente estranho para o mundo dos jogos de tabuleiro. Devido às restrições algumas pessoas passaram a jogar mais e outras muito menos. Alguns dos ditos “gamers” de hobby tiveram de reinventar hábitos. Os encontros públicos deixaram de poder acontecer tal como de hábito. Muitos de nós tivemos de jogar mais em modo solo – no meu caso era um modo que desprezava completamente. Outros dedicaram-se às plataformas online de emulação de jogos de tabuleiro – confesso que estas não me seduziram. Alguns conseguiram jogar mais em família, com as suas respetivas companheiras e companheiros, inventando também formas de jogar em casa em encontros mais restritos, alguns com máscaras e gel desinfetante à mão. 

Surgiram notícias de que, mesmo entre os jogadores casuais ou pessoas que não jogavam há muito tempo, houve uma procura maior por jogos de tabuleiro. Foi uma resposta à necessidade de encontrar atividades alternativas para toda a família ou para fazer com quem partilhasse a mesma casa ou convivesse num círculo social mais restrito. Mas como, muito provavelmente, estas pessoas apenas acederam aos jogos que já conheciam da infância. É normal, vamos sempre seguir ou comprar o conhecemos, especialmente porque entra em jogo também o efeito de nostalgia. Dificilmente alguém arrisca gastar dezenas de euros numa coisa que não conhece e muito menos numa que exige um processo de aprendizagem considerável. Vivemos na era do imediato, quer queríamos quer não. 



O que me pareceu ser realmente desconfortável neste fenómeno foi o modo como a coisa foi publicitada ou manipulada. Estava já no ar, mesmo antes do Covid-19, a noção de que havia um ressurgimento de interesse pelos jogos de tabuleiro. Mas, muitas vezes, a mensagem passava para o grande público como um efeito de nostalgia, do voltar aos jogos do passado. Muitas pessoas podem ter voltado aos jogos de infância, mas sabemos que não são esses jogos que alimentam as feiras internacionais, os conteúdos criados sobre o hobby e até novas profissões e formas de usar os jogos em múltiplos contextos. Parece-me que as empresas que produzem e distribuem os jogos do mercado de massas, aqueles da nossa infância que todas as pessoas conhecem, mas agora replicados em formas supostamente mais moderna mas que no fundo são a mesma coisa há décadas, se aproveitaram do fenómeno de crescimento dos jogos de hobby para insistir com a venda dos jogos do costume.

Isto pode ter efeitos positivos se as pessoas que voltam aos jogos antigos se aperceberem que existem outros. Mas se quem voltar a estes jogos ficar só por aí, pode ficar com uma ideia muito distorcida sobre o que tem sido o ressurgimento do fascínio de jogar jogos analógicos e sobre as inovações associadas ao desenvolvimento destes produtos criativos de autor. Pensar que o hobby dos jogos de tabuleiro se resume a jogar os jogos de infância é uma visão perigosamente fácil de se implementar. Vai surgir frustração e são imensos potenciais jogadores que perdemos. Estas pessoas podem ficar com a ideia que todos os jogos de tabuleiro consistem em lançar dados para andar numa barra de progressão ou às voltas, que se trata apenas de mecânicas alectórias que determinam os resultados, as casas onde calhamos e as cartas disponíveis para jogar. Casos em que é o jogo que nos joga e não o inverso. Podem pensar que são infantis ou que têm de perder uma noite inteira com um jogo do qual podem ser eliminados logo no início. Podem pensar que têm de ler uma enciclopédia antes de os poder jogar, que vão estão num duelo a ter de pensar 50 jogadas à frente ou a lançar um dado que determina o desfecho de uma batalha sem qualquer outro efeito que o possa influenciar. Os jogos de tabuleiro modernos podem ter isto, mas normalmente têm muito mais ou implementam novas formas de gerar experiências que nos marcam. 

Já se percebeu que receio este efeito parasitário dos jogos do mercado de massas, mas as editoras e os jogadores dos jogos de hobby têm alguma responsabilidade também nisto? Até que ponto os jogos de hobby não se têm colado também a estes jogos que uma grande maioria de nós despreza? Ficam as dúvidas no ar… quem sabe até surgir uma vacina que nos salve o hobby. 


autor: Micael Sousa
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