domingo, 3 de maio de 2020

Coisas que podemos saber cientificamente sobre jogos de tabuleiro

Jogos de tabuleiro há muitos, aliás, existem jogos desde que somos humanidade. Mas nem todos os jogos são iguais embora usemos termos que possam levar os mais distraídos a juntar tudo no mesmo pacote, ou na mesma gaveta. Por outro lado, numa ânsia por tentar especificar o objeto do nosso hobby, também podemos criar tantas caixas semânticas para colocar os nossos jogos que depois nem nós nos entendemos. 

#boardgamephotocreative | disponível em: Instagram.com/micaelssousa
Falei do nosso hobby propositadamente, pois é assim que os jogos de tabuleiro que geram comunidades de gosto se devem definir. Isso não significa que os jogos do mercado de massas não possam gerar hobbies, porque sabe-se que há quem colecione, por exemplo, monopólios e riscos. Mas o termo hobby usa-se porque houve jogos inicialmente criados como hobby, paralelamente às grandes empresas que já os faziam como produto de entretenimento de massas. Como em qualquer hobby ou atividade de nicho, tendem a surgir formas especializadas de conhecimento e cultura. Foi isso que aconteceu com os jogos, originando novos designs, tipologias e, no final, produtos que criaram um mercado próprio e que agora se torna mais acessível e aberto. São estes os jogos de hobby, aqueles que chamamos jogos de tabuleiro modernos, porque dá jeito distingui-los semanticamente dos restantes jogos que, com alguma sobresseria apelidamos de “não-modernos”. Isto dos hobbies gera sempre elites e pedantismos – é normal e não é por mal, é cultura. De uma forma mais rigorosa, estes jogos de hobby, para abarcar toda a diversidade deveriam ser definidos como jogos analógicos, tal como fazem os editores da Analog Game Studies. Acaba por ser mais correto, porque conseguimos assim incluir, sem dúvidas, os jogos narrativos, de miniaturas, colecionáveis e géneros híbridos. Se pensarmos nos jogos de tabuleiro, nas classificações de jogos tradicionais ou clássicos também surgem incertezas. Estamos a falar dos jogos imemoriais como as mancalas, damas e xadrez ou dos jogos já com dezenas de anos como monopólio e jogo da vida? Proponho que os tradicionais sejam os primeiros, incluindo neles jogos populares e etnográficos, e os clássicos os monopólios e afins, que por sinal se encaixam também nos jogos do mercado de massas, em que se assumem mais as marcas das editoras que os autores. Depois então temos todos os outros, os jogos de hobby, aqueles onde o autor tem um destaque próprio e, habitualmente, tendem a demarcar-se pela originalidade das mecânicas e dinâmicas de jogo que proporcionam. Tentam inovar e direcionar para segmentos de jogadores específicos, os gamers se quisermos simplificar, embora isso também possa ser polémico. Dentro deste tio de jogos podemos especificar em wargames, jogos narrativos, simulação, colecionáveis, eurogames, ameritrash e uma infindável quantidade crescente de jogos híbridos que misturam traços dos vários subgéneros, apesar de todos os limites dúbios e altamente questionáveis. 

A comunidade de hobby tende a gerar e alimentar a sua cultura, a procurar e criar conhecimento, mas nem sempre da forma mais estruturada. De quem é a culpa? E haverá culpa sequer para atribuir? Será um problema? Sim e não, na minha opinião. Estas dúvidas geram discussões infinitas que fazem parte do fascínio da dimensão cultural dos hobbies, especialmente dos que estão vivos e em desenvolvimento. No entanto complica quem quer seguir por abordagens mais sistematizadas, agora que os jogos têm um renovado interesse por poderem ser utilizados em processos de gamificação e de serious games.

Quanto a culpas, bem… a academia tem uma parte da culpa. Existe alguma investigação sobre os jogos analógicos, embora a esmagadora maioria dos estudos dos jogos se foquem nos jogos digitais. Apesar disso existem artigos e publicações sobre os jogos de hobby, perdidas entre milhões de outros registos. Para os académicos, apesar de terem muito que desbravar, esse conhecimento pode ser acedido. No entanto, para todos os outros pode ser impraticável ler esses artigos e livros pagos, por vezes a peso de ouro. Enquanto académico, pelo menos nesta fase da minha vida, eu e todos os colegas somos impelidos a produzir “ciência”, mas a ditadura das indexações força-nos a publicar em certos sítios que não estão acessíveis aos grandes públicos. É, no mínimo, um paradoxo para a ciência na era da informação… Uma excepção a isto é a ETC Press, associada à Carnegie Mellon University que tem uma parte considerável dos seus livros técnicos e académicos sobre jogos disponíveis gratuiramente online aqui

Quando desafiei o Edgar a ajudar-me a fazer um artigo sobre jogos de tabuleiro não sabia bem onde me estava a meter – acho que nem ele. Foi uma procura árdua. Milhares de artigos, dezenas de livros e outros tipos de publicações com informações contraditórias. Uma necessidade imperiosa de estruturar tudo aquilo, recorrer às nossas redes de acesso ao conhecimento científico, num trabalho paralelo ao que estudamos habitualmente. Foi um esforço por construir algo que se parecesse com um artigo cientifico e lutar para que pudesse ser aceite numa conferência de jogos digitais, porque das outras simplesmente não há, ou quando há são inacessíveis ou não produzem o tipo de publicações que necessitamos para o currículo. Também foi surpreendente perceber que, apesar de algumas desconfianças, essas conferências aceitam conteúdos sobre jogos analógicos, pois há muito que os une nas abordagens sistémicas aos jogos digitais. O fruto desse trabalho está disponível aqui, mas, como é comum no atual estado da produção cientifica, não é gratuito. Ainda assim estão disponíveis as referências bibliográficas que podem ser já uma boa base para saber mais. Por isso, o que se pode fazer é continuar a partilhar esse e outros conhecimentos por outras vias, aqui no blogue, no canal de Youtube e noutras publicações de maior lastro, tal como os artigos que tenho conseguido fazer no P3 sobre jogos e tabuleiro.

Ainda assim vão existindo algumas fontes gratuitas que nos podem ajudar a consolidar e estruturar conhecimento sobre este tema dos jogos analógicos – ou simplesmente de tabuleiro ou de mesa. Remato aqui o texto com a recomendação do Analog Game Studies que já referi e do excelente podcast Ludology. Devorar e compreender estas duas criações fará de todos verdadeiros especialistas nesta área, mas desde que continuem a jogar também. 

Autor: Micael Sousa

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