sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Racismo nos Jogos de Tabuleiro - Opinião por Edgar Bernardo

Na última intervenção sobre o mundo Meeple optei por apresentar alguns comportamentos dos Meeples baseados em pessoas concretas com quem jogo semanalmente. Comportamentos que certamente terão paralelo na experiência de qualquer jogador de tabuleiro. Terminei esse discurso com a promessa de abordar a questão dos Meeples brancos e pretos no universo do Jogos de tabuleiro, mais concretamente, proponho abordar se existe de facto Racismo nesta indústria de entretenimento.
 
Fonte da imagem: http://www.gettyimages.pt/detail/v%C3%ADdeo/animated-3d-chess-pawns-turning-filmes-de-arquivo/472417299

De facto não é com a maior assiduidade que as cores branca e preta surgem nos jogos de tabuleiro nos Meeples, na maioria dos casos, estas cores são reservados para marcadores de rondas, acções, e outras componentes neutrais. Esta determinação emerge derivada a duas questões fundamentais. A primeira, centrada na visibilidade, ou seja, são cores que se destacam nos tabuleiros; a segunda, um recalcamento “eurocêntrico” face a cargas simbólicas histórico-culturais das nações que produzem estes jogos.

A corroborar a primeira situação temos os jogos clássicos, como damas ou xadrez, onde se procuram utilizar estas duas cores, elas próprias num tabuleiro monocromático, o que ainda mais destaca as peças com clareza. O que pretendo dizer é que existia uma motivação clara para a utilização destas duas cores nas peças.

Quanto à segunda questão, a do eurocentrismo, ou ocidentalismo, como preferirem, esta assenta na ideia de que dado o percurso histórico-social dos países europeus, e de resto ocidentais, responsáveis pelo processo de massificação da escravatura à escala global, assim como a rotulação de certos grupos étnicos com cores, por exemplo, os chineses como os amarelos, foi desenvolvida uma sensibilidade na utilização de cores nas peças dos jogos de tabuleiro. Nesta sensibilidade não se tem por hábito utilizar as peças pretas para representar escravos, ou peças brancas para representar um elemento determinante ou dominador num jogo de tabuleiro.

Na minha opinião, dois exemplos deste recalcamento infundado é o facto de escravos mudarem de nome para colonos e ainda assim mudar a cor de preto para castanho (ex. Puerto Rico), ou o facto da peça que representa o Rei no El Grande ser ora castanha ora negra e não branca ou azul. Porque haveria de branco ou azul ser mais adequado? Porque a cor branca permitiria ver com maior clareza a peça, ou azul porque historicamente a monarquia era apontada como tendo “sangue azul”, por exemplo.

Aqui entramos no ponto que queria tocar. Será que um jogador ou mesmo um designer de jogos de tabuleiro deve seleccionar as cores a atribuir tendo em mente a jogabilidade do jogo ou as sensibilidades culturais? Sinto que a maioria dos leitores diria que ambas as situações devem pesar nessa decisão, mas a verdade é que existe uma tendência para atribuir maior peso às sensibilidades culturais e assim, incorrer no risco de discriminação face a outras culturas. Eu explico.

Olhando para uma psicologia ocidental das cores podemos verificar que a cor branca é vista como de pureza e transparência, ao passo que a preta como de mistério e desconhecimento, por outras temos o branco como cor associada a aspectos positivos e a preta a dúbios, exóticos até. Esta é a visão eurocêntrica que todos tomamos como global no entanto a realidade é múltipla e mais complexa e devemos considerar que ao optarmos por esta posição poderemos estar a ferir outras susceptibilidades.

No oriente, concretamente na China, a cor preta está associada ao neutral e divino, e como tal ao poder do imperador, ao passo que a branca está associada à pureza, mas de forma oposta à ocidental, já que a pureza aqui é sinónimo de luto. Na Índia, o preto está associado à inércia e a representações do mal, ao passo que o branco é também cor de luto e de paz. Ou seja, tem semelhanças e diferenças com tanto o Ocidente como com a China. Já no Peru o branco é associado a bem-estar e à temporalidade e o preto à virilidade masculina…

Os exemplos podem ser múltiplos mas a questão mantém-se: Não será absurdo atribuir demasiado valor simbólico às cores quando estas significam coisas diferentes de cultura para cultura? Não fará sentido usar as cores para tornar o jogo mais aprazível e mais claro e não tanto pesar essa componente cultural? Ou por outra, não será mais interessante, até em termos de temática, usar as cores a favor da imersão no jogo, e não em função das cargas políticas e sociais contemporâneas?

Usando novamente o exemplo do Puerto Rico, não faria mais sentido no lugar de colonos usar escravos e esses escravos serem representados por peças pretas? A verdade é que não eram os colonos brancos que as cultivavam mas sim os escravos africanos. Estará um jogador a ser racista, ou o designer, por ser historicamente correto?

Eu considero que o ponto-chave para a sensibilidade histórico-cultural não reside na atribuição politicamente correta das cores nas peças e Meeples, mas a sua capacidade de nos arrastar para esse imaginário de forma construtiva e divertida. Eu abomino o racismo e a escravatura, e não é por não serem peças castanhas ou verdes que considero que podemos educar quem jogo sobre essa realidade passada, pelo contrário, é pelo confronto com a realidade que conseguimos ultrapassar esse complexo e avançar enquanto espécie (mais ou menos) inteligente.

Em suma, racismo é um comportamento assente em valores falaciosos que colocam grupos étnicos em ordem de grandeza utilizando variáveis histórico-estéticas sem valor real. É algo construído ao longo do tempo e que a sua desconstrução obriga ao confronto. A fuga a esta prisão do recalcamento e do politicamente correto incorre na perpetuação do problema e não o resolve, é uma opção paliativa passiva.
Considero com toda a firmeza que se um jogo não retracta um grupo étnico de forma aleatório está a ser racista, com a excepção de escolher deliberadamente cores que tendam representar historicamente uma situação político-social particular, como já argumentei no exemplo do Puerto Rico. O racismo associado à imagem é um tema interessante e que merece um olhar mais atento à forma como vemos o “outro” e “nós próprios”.

Aliás esta questão do racismo nos jogos de tabuleiro leva-nos a outra questão próxima mas que, a meu ver, é realmente preocupante, a discriminação de género nos jogos de tabuleiro, o próximo ponto a debater.

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