quarta-feira, 25 de julho de 2018

Novos jogos: a tendência para os temas fantasiosos - opinião por Micael Sousa

Parece-me ser mais ou menos evidente estar a surgir uma tendência crescente para serem publicados mais jogos com temas fantasiosos. Sempre se publicaram imensos jogos deste género, de realidades alternativas, mundos paralelos, ficção cientifica, temas mitológicos, o "steam punk" e influencias fantasiosas de mundos próximos das narrativas "tolkianas" e suas influências medievais. Apesar disso há uma sensação que uma mudança se está a realizar. Não tenho dados estatísticos, mas é evidente o crescimento desta tendência.

Everdell.

Na prática cada vez se publicam mais eurogames com temas ditos menos sérios. Se há uns anos os eurogames usavam quase exclusivamente temas de adultos, invocavam acontecimentos e momentos históricos, aproximavam-se de simulação de processos produtivos, hoje já não é bem assim. O design gráfico tem mudado com componentes cada vez mais bem trabalhados nos jogos europeus, tendo o efeito negativo de fazer disparar os preços dos jogos para o consumidor final. 

Será isto a afirmação de que os adultos podem jogar coisas com temas menos sérios sem o preconceito de serem acusados de infantilidade? Parece-me que antigamente se optava por estes temas intencionalmente como afirmação de que estes eram jogos de adultos. Talvez essa necessidade esteja a desaparecer. Será?

Quando lidamos com grandes públicos estranhos aos jogos de tabuleiro modernos, naquilo a que chamamos “processos de evangelização”, uma capa com ilustrações “cartoonescas” mais infantis pode afastar os mais desconfiados. Noutros casos pode aproximar, porque os adultos de hoje já experimentaram uma forte exposição a conteúdos de aspeto infantil na sua infância e juventude, mas sérios nos conteúdos, algo que se pode constatar em séries de televisão, filmes, livros e nos próprios jogos digitais. Os Simpsons não estão para novos, tendo demonstrado ao grande público como o humor para adultos pode ser apreciado em desenhos animados.

O mercado parece cada vez mais diversificado e com oferta para todos os gostos e estéticas, com mecânicas de jogo mais desenvolvidas a serem utilizadas em temas novos. Será que um dia poderemos ter as mesmas mecânicas em temas mais sóbrios e noutros mais animado? Seria interessante ter esta opção. Existem em alguns casos, lembro-me recentemente do “Century: The Spice Road” com a versão mais próximas dos temas tradicionalmente associados ao estilo alemão e a versão “Golem” graficamente mais animada e fantasiosa. No meu caso pessoal já me senti atraído por alguns jogos só pelo tema ou aspeto, noutros repelido pelo “embrulho”. Será que mais editoras irão optar por estas variantes? Veremos.


Century: Spice Road & Century: Golem edition


Nisto confesso que sou um bocado purista. Gosto de fantasia, mas não me agrada temas demasiado infantis ou uma fantasia colada num jogo somente por eventuais questões comerciais. Um desses exemplo de aspeto gráfico, supostamente apelativo, que imensas pessoas referem como sendo uma estética positiva, para mim tem efeito contrário. Caso do “Dice Forge” que tem uma mecânica interessante na originalidade, mas que o aspeto gráfico fantasioso demasiado infantil me afasta do jogo. Para mim é demais. Tentaram fazer o jogo visualmente tão apelativo que estragaram – na minha opinião, pois serei provavelmente o único a achar isso.


Dice Forge


Um outro exemplo estranho é o “The Game” com o seu aspeto sinistro. O jogo é totalmente abstrato, mas parece que optaram por aquilo para parecer cool ou apelativo a um público mais radical e de franja. 
The Game

Seja como for ainda prefiro aqueles temas mais clássicos de simulação. Fazer uma vinhaça. Desenvolver uma cidade. Lutar por melhorar a nossa empresa. Explorar um determinado período histórico do passado. No entanto, também é tematicamente interessante jogar um “Game of Thrones: the boardgame”, porque aí claramente o tema faz sentido naquele universo. Agora, estar a colar coisas fantasiosas só para mascarar um jogo é que me desagrada mais, sendo que há sempre algumas exceções.

Game of Thrones: The Boardgame 2nd edition


Fica a sessação de que realmente a indústria está a mudar, especialmente na dimensão estética e temática dos níveis de complexidade iniciais e intermédios das novas criações de jogos. Resta saber para onde tenderá a indústria e como respondemos nós a isso: os consumidores e apaixonados por jogos de tabuleiro modernos.

quarta-feira, 18 de julho de 2018

Quando o Urbanwins me ajudou a aplicar jogos de tabuleiro modernos a coisas sérias - Texto por Micael Sousa

O meu envolvimento com jogos e tabuleiro modernos tem alguns anos. O primeiro jogo que explorei mais a fundo foi o Settlers of Catan, jogo que se considera o marco simbólico do início da era dos jogos de tabuleiro modernos. Conheci este jogo talvez em 2000 ou 2001, mais coisa menos coisa, mas só o comecei a jogar intensamente lá por volta de 2004. Até lá jogava Magic: The Gathering, que era um trading card game, de cartas colecionais, mas que explorava algumas novas mecânicas e designs de jogos analógicos de origem norte americana. Mas, com o tempo, esse jogo perdeu o interesse, pois, para manter o meu envolvimento com ele obrigava a uma dedicação para me manter nas competições nacionais e continuar a investir muito dinheiro. Quando o comecei a jogar, por volta de 1996 a 1997, aquele mundo era novo e vibrante, mas depois foi perdendo o encanto, ainda que tenha jogado quase 10 anos com algumas intermitências.

Settlers of Catan
Contudo ficou o gosto por este tipo de jogos, transformando-se mais em atividade social mais aberta, algo que o Catan proporcionava mais. No meu grupo de amigos havia uma forte cultura de jogos digitais. Realizámos muitas semanas em que criávamos redes locais para jogarmos em grupo. Com o tempo também toda essa logística ficou inviável. Mesmo com o acesso e velocidade da Internet o tempo escasseava para manter esses hábitos de jogos. A vida tinha mudado. Muitos de nós já estávamos a trabalhar e em relações estáveis. Mas um pequeno grupo de amigos mais chegados conseguiu manter o hábito de jogar, principalmente jogos de tabuleiro. Jogávamos Catan. Jogámos durante muitos anos apenas esse jogo, desconhecendo que o mundo dos jogos de tabuleiro estava em ebulição. Deste núcleo duro constituído por mim, pelo Edgar e pelo Hugo, fomos mantendo hábitos e conseguimos que as nossas namoradas se interessassem também pela sociabilização através dos jogos de modelo europeu. Na altura nem desconfiávamos que houvesse tal distinção. Simplesmente gostávamos destes novos jogos. Por volta de 2008 ou 2009 - já não sei precisar - eu e o Edgar fomos à primeira Leiriacon, a maior e mais antiga convenção de jogos de tabuleiro modernos que se realiza no distrito de Leiria desde 2005. Aí descobrimos que existiam milhares de jogos espetaculares. Desde então nunca mais parámos de jogar entre nós. Fomos adquirindo jogos, especialmente eu, porque me ficou o bichinho do colecionismo. Fascinava-me, e continua a fascinar a variedade e as novidades desta indústria criativa. Jogámos muito em casa uns dos outros, e sempre que podíamos íamos aos encontros mensais na Marinha Grande criados pela Spiel Portugal, que era quem organizava a Leiriacon [1]. 

Encontro Mensal de Jogos na Marinha Grande - 2013
Em 2014, depois de um desafio dos membros da Spiel Portugal e da nossa vontade de querer continuar a desenvolver este hobby, começamos a organizar os nossos próprios encontros de jogos em Leiria. Lançamos o desafio a uma associação da qual eu era associado. Aceitaram e a comunidade foi crescendo. Surgiram os Boardgamers de Leiria, num novo formato, mas dando continuidade ao que se fazia na Marinha Grande. Fizemos imensos encontros e sessões de jogos gratuitas para a comunidade local. Era evidente que estes novos jogos de tabuleiro se constituíam como poderosas ferramentas de intervenção e inovação social, que podiam ser utilizam em múltiplos contextos: integração social, desenvolvimento de competências, técnicas de ludoterapia, técnicas alternativas de aprendizagem, etc. Em 2018 criámos então uma nova associação, a Asteriscos, para continuar a desenvolver os nossos projetos com jogos. A comunidade tem crescido de forma sustentada, tendo sido feita uma parceria com uma associação de pais de uma escola de Leiria, possibilitando uma aproximação à comunidade local e escolar. Começamos apenas com 3 pessoas e hoje somos dezenas [2].

Encontros de jogos de tabuleiro na escola primário dos Capuchos em Leiria
Tudo isto para introduzir o historial de utilização destes jogos para agora referir uma outra aventura que se iniciou devido a uma necessidade de um projeto europeu. Em 2017, na primeira ágora do projeto Urbanwins, que se foca na implementação de metodologias colaborativas para abordar as temáticas dos resíduos urbanos e do próprio metabolismo das cidades, surgiu uma ideia. Era necessário encontrar um “quebra gelo”. Depois de ter frequentado uma formação intensiva na Universidade Nova de Lisboa sobre metodologias colaborativas, dirigida pela professora Lia Vasconcelos, tornou-se para mim evidente que havia imenso espaço para utilizar metodologias alternativas nestes projetos. 

Utilização do jogo Dixit no projeto Urbanwins
O “quebra gelo” que propus consistiu em utilizar parcialmente um dos jogos da minha ludoteca de jogos de tabuleiro modernos. Utilizei as cartas do Dixit. Através delas, dos seus desenhos surrealistas, os participantes na primeira ágora do Urbanwins em Leiria puderam falar de si e do problema dos resíduos de forma criativa. As cartas, informalmente, ajudaram a desbloquear a participação de uma forma criativa, respeitando a individualidade dos participante, aspetos essenciais para iniciar o processo colaborativo que se ia construir posteriormente. Assim foi [3].

Workshop de jogos na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Coimbra
Esta experiência de sucesso levou-me a testar mais elementos de jogos noutros contextos. Fui convidado para algumas aulas abertas em instituições de ensino superior, onde utilizei jogos e elementos de jogos para abordar determinadas temáticas. Através dos jogos, os alunos lidavam com a matéria e conteúdos de cada disciplina, de forma dinâmica, participativa e divertida [4]. Ganhavam autonomia e interesse pelas aulas. Eram os próprios que identificavam os objetivos das dinâmicas. Com isto desenvolvi uma metodologia própria, que apliquei em aulas de: turismo, património, liderança, trabalho colaborativo, gestão de recursos, planeamento, soft skills e etc. Passei pelo Instituto Politécnico de Leiria, na ESTG e ESECS, D. Dinis Business School, ISCAC – Business School de Coimbra, Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Coimbra, ISEG – Lisbon School of Economics & Management. Foi uma grande aventura que tudo indica continuar a desenrolar-se, uma vez que continuam a surgir novos jogos e a experiência acrescida facilita o processo de utilização destas ferramentas a contextos cada vez mais complexos [5]. 

Sessão de jogos no ISEG
Passei também a integrar o GOVINT Portugal, através da participação do grupo das metodologias colaborativas, onde contribui para o desenvolvimento de uma dinâmica colaborativa que se materializou na forma de jogo [6].

Sessão de jogos com a equipa do Govint
Em jeito de resumo, podemos dizer que foi o projeto Urbanwins, pela sua inovação, que abriu a porta para que tenha começado a utilizar jogos de uma forma alternativa. Permitiu-me compreender o que são as metodologias colaborativas, que vão muito além da mera participação. Foi uma inspiração que se transferiu depois também para a vertente académica, tendo influenciado parte das investigações que realizei da componente letiva do doutoramento de planeamento do território. Apercebi-me que os jogos podem ser utilizados para promover o planeamento colaborativo. Provavelmente será esse o caminho de investigação que irei tomar nos próximos anos [7].

Mais que uma referência a um projeto, este texto é uma narrativa muito pessoal, demonstrando como os percursos de vida, os nossos relacionamentos sociais e preferências podem conjugar-se de forma surpreendente. Jamais pensei que pudesse utilizar os jogos como ferramentas sérias, numa relação com o conceito de “serious gaming” [8]. Mas a verdade é que estou cada vez mais perto disso e que na pática isso já ficou demonstrado através do Urbanwins. No entanto, há um imenso potencial por desenvolver no futuro e noutros projetos.

Para completar esta leitura pode ter interesse em ver também estes links:

quinta-feira, 5 de julho de 2018

O primeiro eurogame foi americano - texto por Micael Sousa

O jogo Acquire tem oficialmente 56 anos. Foi criado em 1962 por Sid Sackson depois da empresa norte-americana 3M ter definido como estratégia de futuro: criar novos jogos de tabuleiro, pensados especialmente para adultos, inovando no design. O que é mais curioso desta pequena história é que o jogo teve um sucesso relativo nos EUA, mas foi imensamente influente na Alemanha, ao ponto de Sid Sackson ser uma pequena celebridade posteriormente fora do seu país, onde, sem saber, ajudou a criar um novo estilo de jogo. Esta é um dos vários relatos que Stewart Woods (2012) apresenta no seu livro, uma rara obra dedicada aos jogos de tabuleiro europeus de design moderno.

Acquire (Edição de 1968)

O mercado alemão, onde a cultura dos jogos estava imensamente presente, sendo uma das atividades familiares e culturais fortemente incentivadas socialmente, estava a necessitar de ser reinventado. No pós-2.ª Guerra Mundial o estilo de jogo que o Acquire trouxe, de competição indireta sem elementos confrontacionais demonstrou que era possível criar jogos para adultos, mas que podiam ser utilizados por grupos alargados, numa sociedade aberta a este tipo de atividades.

Segundo Stewart Woods (2012), Acquire pode bem ter sido o primeiro jogo de estilo alemão, posteriormente conhecido por eurogame, embora não tenha sido feito na Alemanha nem por alemães. Se analisarmos as suas características (domínio das mecânicas sobre o tem; tem de jogo relativamente curto; regras simplificadas comparativamente com os jogos de guerra; ausências de eliminação de jogadores; e tentativa de mitigar o fator sorte através da possibilidade de tomada de decisões). A sua influência, depois da divulgação na europa a partir de 1966, foi enorme no desenvolvimento posterior da indústria de jogos de tabuleiro na Alemanha, transformando-se num exemplo que iria inspirar uma sociedade desejosa de dar continuidade aos seus hábitos de jogo como expressão cultural. A tendência seguiu pela aposta na criatividade, privilegiando novos designs e ideias, tal como uma inerente necessidade de superar os traumas de guerra evitados. Ainda hoje podemos adquirir o jogo Acquire pois foi recentemente reeditado e encontra-se disponível em algumas lojas.

Esta origem dos eurogames é muito curiosa, especialmente pela tendência para separar por duas categorias: os jogos pela sua influência norte-americana e europeia.  Embora isso hoje tenha cada vez menos relação territorial, pois ambos tipos são apreciados em diferentes regiões, ainda existe uma certa tendência para se apreciar mais cada género no seu território de desenvolvimento.

Existem várias razões para os eurogames ou jogos de etilo alemão terem surgido na Alemanha, por razões culturais e de mercado. Falaremos posteriormente disso num próximo texto.

Referências bibliográficas:
Woods, Stewart (2012). Eurogames: the design, culture and play of modern European board games. London:  McFarland & Company, Inc. , Publishers.
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