sexta-feira, 31 de março de 2017

Brincar com coisas sérias - Opinião por Pedro Sousa e Silva

A utilização dos jogos de tabuleiro para causas sociais tem dado que falar em Leiria nos últimos tempos, a julgar pelas várias menções do assunto nos jornais locais. Na mais recente, foi mencionada a parceria do Clube de Boardgamers de Leiria com o projeto Rua Direita e eventos feitos com jovens do Lar de Santa Isabel, do Internato Masculino de Leiria, no Estabelecimento Prisional de Leiria, no serviço de Pediatria do Hospital de Leiria, em várias escolas e ainda na Universidade Sénior da Marinha Grande.
 
Há espaço para todos no nosso clube

Não será já presunção destes jogadores, andarem a meter o nariz em tantas realidades diferentes e acharem que faz sentido espetar jogos em todas? O que é que realmente estão a contribuir quando fazem estes eventos, para além de aproveitarem qualquer oportunidade para ir disfrutar do seu passatempo, chamando-lhe causa social?

Bom, antes de mais, convém deixar algo bem claro: enquanto membro do clube e organizador destas coisas, posso atestar solenemente pela minha honra que nestes eventos não há lugar à fruição dos jogos em si, porque passamos o tempo todo a aconselhar, ensinar, explicar, apoiar, e nunca temos oportunidade para jogar propriamente dito. Portanto, nos eventos não estamos de todo a fruir do nosso prazer em jogar jogos, mas sim a fazer um trabalho de voluntariado ao dá-los a conhecer aos outros.

Então, e porquê fazer esse sacrifício? Será que acreditamos assim tanto no poder dos jogos de tabuleiro a ponto de achar que vale a pena perder o nosso valioso tempo com esta atitude de evangelização? Bom… Sim, acreditamos. Passo a explicar:

- Em algumas das realidades acima enumeradas, proporcionam às pessoas uma oportunidade de ocupar tempo livre de uma forma divertida que oferece alternativas a um ambiente menos estimulante. Por exemplo, às crianças internadas no hospital é dada uma oportunidade de se distanciarem da conotação negativa do ambiente hospitalar (doença, vulnerabilidade, falta de autonomia) e entrarem num ambiente mais familiar, imaginativo e estimulante.

- É habitual falar-se de como os jogos de tabuleiro promovem o desenvolvimento cognitivo através da necessidade de planeamento estratégico, antecipação das jogadas do adversário e flexibilidade táctica, mas nem tantas vezes se destaca o seu papel no desenvolvimento de atitudes e comportamentos positivos. Por exemplo, os jovens do Internato Masculino de Leiria adoptaram de forma quase intuitiva uma postura de respeito das regras do jogo, cumprindo as restrições por estas impostas, esperando pela sua vez de jogar, e sendo visível mesmo a aprendizagem de como lidar com a derrota com desportivismo e encarando-a como uma oportunidade de melhorar na próxima oportunidade.

- Os jogos de tabuleiro exigem ser jogados presencialmente, convidando ao contacto e à conversa com os outros jogadores, criando uma aproximação que contraria a tendência crescente de isolamento que nos têm trazido os videojogos e as redes sociais. À volta da mesa de jogo criam-se amizades tangíveis e também se aproximam gerações, como verificámos quando netos e avós se juntaram para jogar no evento da Universidade Sénior.

Estas considerações procuraram evidenciar apenas alguns dos benefícios dos jogos de tabuleiro, de um ponto de vista não apenas teórico mas sim consubstanciado pelo que a prática nos tem mostrado, e que este artigo tentou demonstrar. Não somos só uns maníacos que só querem ver jogos em todo o lado, regemo-nos pelo feedback recebido e pela avaliação contínua daquilo que fazemos. E com base nisso podemos afirmar que quando vamos levar os jogos às pessoas, a reacção costuma ser muito semelhante mesmo entre públicos distintos: Primeiro estranha-se, depois entranha-se.

segunda-feira, 27 de março de 2017

O Meeple Roxo e Contemporaneidade - Opinião por Edgar Bernardo

No início os meeples tinham cores primárias e delas evoluíram para múltiplas tonalidades e variedade. O meeple roxo sempre sentiu inveja dos outros meeples. A sua cor não era muito procurada nem desejada, mesmo sendo uma cor mais recente, mais próxima da curva avançada do evolucionismo do espectro. Muitas são as vezes que vê os outros meeples a participar nos jogos de tabuleiro desde a distorção do plástico que o resguardava. É muito difícil ser diferente. Só nos últimos anos é que o roxo teve a oportunidade de ser colocado sobre a mesa, mas não como jogador. O roxo é às vezes usado como recurso em forma de cubo ou de disco. O meeple roxo tem então ainda menor hipótese de ser tocado por jogadores.
 

Volta e meia lá surge um jogo que permite o meeple roxo entrar em acção, mover-se pelo tabuleiro, avançar sobre a marcação dos pontos... “O que é aquilo?” - pensava o meeple roxo quando viu um tabuleiro a ser jogado lá longe noutra galáxia rectangular. Os meeples já foram trocados por discos, por cubos, por cartas, mas algo novo parece ganhar espaço, ganhar espaço aos meeples. Se os meeples perdem espaço, então o que acontecerá aos meeples, como o roxo, que não têm tantas oportunidades de ir a jogo?

Plástico. Que espécie nova é esta que não respeita os materiais da criação boardgamer? O cartão e a madeira estão ameaçados por este novo material vindo das profundezas da terra. O meeple roxo condena e despreza o meeple plástico, essa nação de meeples novos que também emergem como hordas bárbaras e em várias cores. Meeples plásticos que são transportados em sacos também de plástico... não há dúvida, são o profano dos jogos de tabuleiro, o incesto praticado entre o conteúdo e a portabilidade. O que virá a seguir? Tabuleiros de plástico? Caixas de plástico? “Malditos hipsters da contemporaneidade!” - acusa indignado.

O meeple roxo despreza estes novos meeples de plástico, como versões robotizadas do homem para os humanos, estes totems de plásticos são leves e cicatrizados, não mantêm a forma amorfa e genericamente antropomórfica que chegou faz milhões de anos meeples. O meeple convencional é reconhecido pela sua simplicidade, mas este, este é escravo da vaidade. Este pinta-se, decora-se e exibe-se: “Este não viverá em sacos de plástico. Deve viver na gaveta de uma mala de mulher!” - afirma repugnado. Da estética à forma definida. O meeple roxo tem orgulho da sua forma vaga e não rotulada, mas o de plástico tem toda a sua forma bem desenhada, aperfeiçoada e desenhada com precisão a laser. O ginásio do plástico é a impressora e o molde de onde nasce e é definido, e como os ginásios dos homens, está cheia de quem procura atingir ideais de beleza por motivos de vaidade e não por princípio. Os jogadores humanos vão deixar de imaginar e projetar a sua imaginação nos totems de jogo, e vão passar a estar condicionados pela definição exata de quem os criou.

O roxo está indignado. O progresso não pode ser travado. Quem salvará o meeple roxo? Não há quem o queira, quem o procure fazer... mas ele tem um plano, ele sabe que divindade o permitiu. Ele sabe quem o castigou pessoalmente. A internet, as plataformas para o consumo diferenciado, e o programas de kickstarter e afins... a tríade babilónica na versão profano do meeple. Que fará o meeple roxo para evitar ou contornar esta realidade e voltar a ser o que era antes? “Antes esquecido que substituído!” - reforça o meeple a si mesmo. “Um dia... um dia... o lugar no saco será novamente nosso! Um dia... o plástico não profanará o plástico, e o meeple, o meeple será de novo só de madeira... sim, MADEIRA!”.

sexta-feira, 17 de março de 2017

Nations – Análise por Micael Sousa

Adoro jogos de construção de civilizações. Quando ainda tinha tempo para jogos de computador eram os meus preferidos. Posteriormente apercebi que era um subtema relevante nos jogos de tabuleiro e fiquei obviamente entusiasmado. Existem vários jogos de tabuleiro que encaixam no tipo “construção de civilização”. Será que o Nations se destaca dos restantes?
 
Fonte da imagem: https://opinionatedgamers.com/2013/12/12/nathan-beeler-review-of-nations/

Em Nations cada jogador desenvolve a sua civilização ao longo de quatro eras: antiguidade, medieval, renascença e industrial. Ao contrário de outros jogos de civilizações não existe um mapa de território onde se coloquem edifícios e unidades produtivas ou militares. O que existem são tabuleiros individuais que registam o desempenho económico, cultural, as principais infraestruturas, poder produtivo e capacidade militar individual. Aqui gerimos recursos e podemos fazer diversas melhorias materiais à nossa civilização, tal como balancear o seu desenvolvimento civilizacional, tanto pela especialidade numa determinada área ou por uma conjugação de várias opções diferentes. Ao nosso tabuleiro individual podemos adicionar cartas de edifícios, maravilhas (wonders), colonias, conselheiros, etc. Temos meeples que representam a população, que podemos atribuir aos edifícios (cartas) definindo a capacidade produtiva de recursos, cultural, estabilidade ou poder militar. Penso que dá para ficar com uma ideia de como o tabuleiro individual é modular e pode ser configurado consoante a estratégia pessoal e o rumo que queremos dar à nossa civilização.

Depois existem dois outros tabuleiros de uso comum. Num estão as cartas que podem ser compradas para adicionar aos tabuleiros individuais. No outro faz-se o registo dos níveis de cultura, poder militar, eventos, eras, estabilidade e arquitectos disponíveis para construção das maravilhas (wonders).

Existem várias civilizações para escolher, com características bem diferentes. Existem muitas cartas diferentes também. Apenas veremos uma pequena fracção delas em cada partida, tornando cada jogo diferente e aumentando a replicabilidade do mesmo. A conjugação diferentes das cartas, das civilizações e das decisões dos jogadores criam em cada partida uma nova história de civilizações. Se juntarmos a expansão dinastias o jogo fica ainda melhor e mais variado.

De notar que estamos perante um jogo de tipo europeu (eurogame) onde a interactividade existe mas é limitada, sendo impossível destruir uma civilização adversária (jogador adversário). No fim ganha quem tiver mais pontos, sendo muitos os caminhos e possibilidades para os obter. Existem guerras, mas têm um efeito destrutivo limitado, podem fazer perder pontos de vitória e recursos, mas apenas isso. Os eventos podem ser calamidades, havendo uma tendência os tentar enfrentar e sobreviver o melhor possível, com o posicionamente relativos dos jogadores nos vários rankings puder influenciar os resultados, o que provoca uma interatividade renovada a cada turno. Isto pode ser visto como uma interactividade indirecta. O mesmo acontece para a compra dos edifícios, que uma vez comprados ficam apenas disponíveis para esse jogador comprador, havendo uma luta para definir a ordem de jogo, criando mais uma interactividade indirecta.

Então Nations é um eurogame de construção de civilizações. Isto, para alguns jogadores, pode ser por si só uma vantagem, para outros acredito que não. Outros potenciais pontes fortes são a sua simplicidade e tempo de jogo. Nations é relativamente simples quando comparado com outros jogos de construção de civilizações e joga-se me metade do tempo. Facilmente conseguimos jogar uma partida a três jogadores em duas horas. Não terá o nível de profundidade de outros jogos e as cartas disponíveis para comprar a cada turno podem introduzir alguma aleatoriedade capaz de prejudicar alguns jogadores, pois pode não haver o suficiente de determinado tipo para cada jogador seguir a estratégia que tinham delineado, no entanto há sempre muitas outras alternativas.

Nations pode ser bastante divertido quando começamos a analisar o percurso da nossa civilização, se considerarmos as combinações de edifícios, personagens, opções políticas e económicas que seguimos. Só isso pode valer a pena. Tematicamente o jogo até faz sentido entre os edifícios, personagens, eventos, maravilhas e guerras. Pode ser até pedagógico no modo como conta a história da humanidade, de uma forma alternativa que leva a um conhecimento para além do jogo. Os mais curiosos vão querer saber mais sobre aquelas cartas que vão aparecendo, embora isso não seja relevante para a vitória e para a dinâmica do jogo propriamente dito.
 
Jogo: Nations
Ano: 2013
Avaliador: Micael Sousa
Tipo: Gestão / Estratégia
Tema: Civilização
Preparação: 10 minuto
Duração: 120 - 150 minutos
Nº de Jogadores: 1 - 5
Nº Ideal de jogadores: 3
Dimensão: Grande
Preço médio: 60€
Idade: 14+

Qualidade dos Componentes: 9
Dimensão dos Componentes: 9
Instruções/Regras: 9
Aleatoriedade: 8
Replicabilidade: 10
Pertinência do Tema: 9
Coerência do Tema: 8
Ordem: 9
Mecânicas: 9
Grafismo/Iconografia: 7
Interesse/Diversão: 8
Interação: 7
Tempo de Espera: 8
Opções/turno: 9
Área de jogo: 8
Dependência de Texto: 7
Curva de Aprendizagem: 9

Pontuação: 8,36

sexta-feira, 3 de março de 2017

Jogos de Tabuleiro: uma atividade de elites? - Opinião por Micael Sousa


Uma elite pode ser uma “minoria social que se considera prestigiosa e que por isso detém algum poder e influência” (1), associar-se ao “que há de melhor e se valoriza mais numa sociedade” (1), ou então ser uma “minoria prestigiada constituída por aqueles que são considerados superiores” (2). Partindo destas definições, será que faz sentido falar nos jogos de tabuleiro como algo elitista ou destinado às elites?
Pintura mural de túmulo de Nefertari - 1298–1235 a.C

Pensando na comunidade de jogadores de tabuleiro, designers, empresas relacionadas com a fileira/mercado de jogos, não me parece que em nenhum desses casos os membros da comunidade se justaponham com as elites sociais. Nem com as elites económicas, nem culturais, nem políticas, nem intelectuais. Há pessoas que, de forma isolada, podem pertencer a estas supostas elites, mas, enquanto grupo, não me parece ser possível fazer uma relação direta com nenhuma delas.

Será que são os próprios jogadores de jogos de tabuleiro modernos que se gostam de autorreferenciar e autoassociar a esse conceito de elite? Talvez sim, mas talvez com algum fundamento em certos casos. Se uma elite é aquilo que há de melhor numa determinada área, actividade ou assunto, os jogos de tabuleiro modernos podem constituir uma elite prórpia, mas talvez somente dentro da própria comunidade. Isto é, ser jogador de jogos de tabuleiro modernos só por si não garante qualquer estatuto. O possível estatuto pode apenas ser possível dentro do grupo. Ou seja, uma elite social dentro de um grupo social já restrito de jogadores. Então será possível construir uma elite que se define pelo tipo de jogos que considera ser superior.

Tudo isto para dizer que não me parece que os jogos de tabuleiro modernos sejam uma coisa de elite. A variedade é tanta que é teoricamente possível encontrar um jogo à medida de cada pessoa. Logo, são uma actividade de potencial universal.

No entanto, há uma tendência para surgir da comunidade uma pequena elite, que privilegia determinados jogos e denigre outros. Diria que isto surge quando importamos sistemas de valores que são próprios de outros elitismos, nomeadamente o elitismo intelectual. Os jogos mais complexos, de mecânicas e designs criativamente polidos, em que alguns podem ser muito morosos e genialmente simples, tendem a associar-se às formas de elitismo extra-jogos para construir um elitismo dentro da comunidade de jogadores.

Não sendo os jogos de tabuleiro modernos coisa de elites sociais, dentro da comunidade formam-se elites sectoriais, um pouco à semelhança de quase todos os subgrupos, sendo o das artes o caso mais paradigmático, que só o é por aprovação dos seus próprios membros, praticantes e especialistas – a final a arte pode ser simplesmente aquilo que o grupo que com ela se relaciona e a produz considerar que é arte. Então podemos chamar a esse microgrupo dentro dos aficionados dos jogos de tabuleiro moderados de elite: os “gamers”.

Hoje em dia a comunidade de jogos de tabuleiro modernos parece mais aberta. Multiplicam-se as convenções, lojas e eventos associativos mais abertos e disponíveis para integrar novas pessoas. Geram-se alguns choques com os “gamers”, pois quando alguém entra no hobbie dificilmente passa de imediato a jogar os ditos jogos dos “gamers”. Aliás,  as pessoas que gostam de jogos de tabuleiro no geral podem nunca vir a jogar esse tipo de jogos, como acontece com algumas pessoas da comunidade à medida que se vai abrindo.

 Lembro-me quando comecei a entrar mais na comunidade. Lembro-me de perguntarem o que conhecia. Só jogava Catan na altura. De imediato me senti diminuído, embora isso talvez não tivesse sido intenção do “gamer” com quem falava. Agora dou por mim a fazer quase o mesmo. Mas como evitar esse defeito de suposta elite? Como dizer a uma pessoa que existem outros jogos e que são, supostamente melhores – porque a comunidade assim os considera – e mais evoluídos sem as ofender? Como fazer isso sem ter de contar toda a história e toda a dinâmica do hobbie?

Ainda existem grupos de “gamers” bastante fechados, quase misantrópicos, apesar do paradoxo, pois os jogos de tabuleiro modernos são uma coisa de comunidade e de grupos. Isto pode afastar algumas pessoas e aproximar outras, pela sensação de elite que dá ao hobbie. Provavelmente isto acontece em todas as atividades com o certo nível de especialidade, mas será inevitável? Havendo culpa, de quem será? Desses grupos que gostam de cultivar um certo estatuto ou das pessoas em geral que preferem o imediatismo de um lazer menos complexo e profundo? Talvez a resposta mais correcta seja que não é uma questão de culpa, mas de promover a diversidade e a oportunidade de cada pessoa conhecer todas a variedade de jogos que existem, podendo então depois fazer as suas escolhas de uma forma informada. Isto leva a novas questões e assuntos, sobre a necessidade da “evangelização” e sobre as atividades de intervenção que podem surgir através dos jogos de tabuleiro. Isso será tratado noutro texto que este já vai longo.
(1) Elite. Dicionário Priberan. Disponível em: https://www.priberam.pt/dlpo/elite
(2) Elite. Infopédia, Dicionários Porto Editora. Disponível em: https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/elite
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