domingo, 31 de dezembro de 2017

Ter tempo para jogar o que gostamos - Opinião por Micael Sousa

Quem realmente tem paixão por jogos de tabuleiro, em princípio, quer jogar o mais que puder. Digo em princípio porque o gosto por este hobby pode manifestar-se de outros modos. Pessoalmente gosto, tal como jogar, de ver noticiais e reviews de novos jogos, mesmo que não os jogue forçosamente. Interessa-me descobrir todas as mecânicas e novas criações. Interessa-me também pensar e escrever sobre isto, tal como comprova a existência deste blogue. Mas, voltando ao cerne da questão: como não há tempo nem dinheiro para experimentar tudo a alternativa é ler e ver vídeos sobre o assunto, de quem se dedica a isso como atividade principal.

Fonte da imagem: https://www.pinterest.com/pin/206110120419495844/

O facto de não se conseguir experimentar todos os jogos relaciona-se como o fator tempo. Mesmo que não possamos comprar todos os jogos, a partir do momento em que estamos inseridos numa comunidade de gamers, por todos e com o contributo de todos, é possível experimentar a maior parte das principais novidades – sendo que o termo “principal” aqui pode ser muito subjetivo. Ou seja, uma pessoa com vida social ativa e um trabalho que não se relacione com a indústria dos jogos de tabuleiro, vai ter dificuldade em gerir o seu tempo, especialmente quando há muitas outras atividades concorrentes.

Estes dois parágrafos introdutórios para chegar a uma situação que me tem acontecido recorrentemente. Dada a falta de tempo, pois valores mais altos se levantam, dou por mim a ter apenas tempo para jogar à noite, quer entre amigos em casa ou nos nossos encontros semanais do Clube de Boardgamers de Leiria. Mesmo nessas noites dedicadas ao hobby o tempo não abunda. Surge sempre o dilema: vou jogar um jogo mais rápido para poder ter companhia à mesa, arriscando não jogar mais nada nesta noite? Isto só é realmente um problema para quem gosta de jogos um pouco mais demorados, tendencialmente mais pesados – é o meu caso. O dilema é inevitável, porque nem sempre os jogos ditos mais rápidos são assim tão rápidos – o que não faltam são jogadores com paralisia de análise (AP) capazes de duplicar o tempo de jogo normal. Se queremos introduzir novas pessoas ao hobby dificilmente podemos começar por coisas demoradas e supercomplexas, embora isto nem sempre seja verdade. Se queremos maximizar o tempo, especialmente nos encontros semanais públicos, somos tentados a começar logo por uma coisa rápida/média, arriscando depois não jogar mais nada também. Lembro-me de jogos de 1 hora chegarem às 3 horas e mais…

Tudo isto para tentar exorcizar algo que não me larga o pensamento: devo mesmo continuar a ter/jogar jogos mais rápidos e médios que depois me entopem as noites de jogos, impedindo de jogar aquelas coisas que deixam um sentimento gratificante? Tendencialmente são os jogos rápidos/médios que prevalecem na mesa, especialmente nos encontros públicos, onde há a preocupação para que todos joguem sem grandes tempos de espera. Também é chato dizer a alguém que não porque se está à espera de jogar uma coisa “melhor” – sendo o melhor algo muito discutível. Ainda assim tenho vários jogos de 30 a 60 minutos na minha coleção. É obviamente preferível jogar estes jogos a não jogar coisas nenhuma.

Tudo isto obriga a alguma gestão do jogo para além do jogo. Parece um jogo em si próprio, um “metajogo”. Somos então submetidos à gestão entre a flexibilidade de jogar algo simplesmente para gerar uma dinâmica de grupo positiva e reservar aquele tempo necessário para aquilo que individualmente nos dá prazer especial, seja que tipo ou género de jogo for, consoante as preferências pessoais ou do grupo de jogo.

terça-feira, 12 de dezembro de 2017

Regras e mais regras: conseguimos dominar todas? - Opinião por Micael Sousa

Dou por mim a não conseguir jogar toda a minha coleção de jogos, nem sequer a saber jogar alguns dos títulos que estão na prateleira. Isto deve-se a uma clara falta de tempo, pois estar constantemente a jogar está longe de ser uma prioridade. No entanto há outro fator que contribui para isto: as regras.


Uma das coisas que me fascina é descobrir novas mecânicas, experiências de jogo no fundo. Isso envolve, obviamente, lidar com muitas e novas regras de jogos. Quando já passámos da centena de jogos conhecidos as coisas podem começar a ficar baralhadas e confusas. Saber tudo isso de cor, especialmente quando não se levam assim os jogos com tanta regularidade à mesa, torna-se difícil. Duvido que não vos aconteça terem jogados, nos últimos a 2 a 3 anos, duas ou três vezes um jogo em que estão constantemente na dúvida quanto às regras, pois nunca há o tempo necessário para se sedimentarem. Pior ainda quando não jogamos bem o dito jogo, violando, inadvertidamente as regras e piorando a experiência.

Não vejo grande solução para isto. Poderia dizer que há um limite para a quantidade de jogos que podemos assimilar e dominar. Mas é impossível fixar esse tipo de conhecimento quanto a indústria está constantemente a libertar jogos, recorrendo a mais e melhores técnicas de marketing, tal como, supostamente, produzindo jogos cada vez melhores.

Quem costuma lidar com novos públicos a quem divulga e ensina jogos de tabuleiro sabe que a reação de quem está a aprender um jogo novo, perante uma imensidão de regras, costuma ser negativa. Dificilmente alguém percebe todas as regras de um jogo de uma assentada, sendo que alguns podem levar cerca de uma hora a ensinar. Imagine-se se tivéssemos de ir a uma aula de uma hora, sem estudar, e de imediato saber a matérias, por vezes ensinada por quem não a domina totalmente ou não tem preparação para comunicar conteúdos de forma eficaz.

Explicar e ensinar jogos é uma arte num mundo cada vez mais rápido e efémero. Não será fácil encontrar pessoas com disponibilidade para gastar horas da sua vida a ouvir explicações deste género, num contexto em que supostamente participam por diversão. Para além disso existe também outra dimensão social importante, que se relaciona com o modo como determinados grupos sociais lidam com regras. Se na Alemanha e Escandinávia poderá ser mais fácil assimilar e implementar um conjunto de regras fixas, cá para o Sul da Europa a nossa informalidade parece não ajudar muito nisso. Obviamente que isto pode ser extremamente estereotipado e preconceituoso, mas serve apenas de exemplo ilustrativo de como o contexto social e cultural tem também influência na relação com as regras dos jogos.

Remato este texto com uma conclusão inconclusiva: há que dominar as regras dos jogos para deles melhor disfrutar, mas somos sempre impelidos a querer experimentar e conhecer mais, o que não facilita nada conhecer bem as regras de todos os jogos que queremos jogar. Podemos concluir também que há muito mais vida para além das regras, que nos pode levar a pensar indiretamente sobre muitas outras coisas da nossa vida.

segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Stone Age Júnior – Análise por Micael Sousa

No mundo dos jogos de tabuleiro há uma clara tendência em adaptar jogos populares de adultos para versões mais simplificadas, que mantenham a essência do jogo, mas permitindo ser jogadas por públicos mais jovens. São criações adequadas para que crianças pequenas possam jogar jogos já de gama superior, fruto de design mais bem conseguido. Um desses casos é o Stone Age Júnior. O Stone Age é um jogo bastante popular, adequado para quem se queira introduzir nos jogos de tabuleiro contemporâneos, deixando de lado coisas muito conhecidas mas altamente alectórias e pouco estratégicas como monopólios e afins.
 

 
Comprei este jogo para a minha filha de 4 anos. Funcionou. Ela é capaz de perceber o funcionamento do jogo. Obviamente que não joga de forma competitiva e o pensamento estratégico ainda não é claramente percebido, mas percebe o que tem de fazer para ganhar, conseguindo gerir os recursos necessários para atingir os objetivos do jogo.

Em Stone Age Júnior competimos para construir o mais rapidamente possível 3 cabanas. No fundo é um jogo de corrida com alguma gestão de recursos e que requer também capacidade de memória. Joga-se por turnos, alternadamente. Na sua vez, cada jogador revela uma peça oculta que corresponde a uma ação. As ações podem ser coisas tão simples como obter um determinado recurso diretamente, movendo o seu meeple para a respetiva casa no tabuleiro, ou andar algumas casas no número predeterminado pela peça, pois o tabuleiro está organizado num percurso circular em que cada casa corresponde às ações das peças que a cada turno temos de virar. Existe um mercado em que podemos trocar um recurso. Existe o joker, que neste caso é representado por um cão, em que tem a originalidade de poder ser “roubado aos adversários”. Por fim existe a ação de construir a cabana, que se materializa por escolher entre três pilhas de peças de cabana cujo custo de construção difere em cada uma. É aqui que entra a gestão de recursos, pois temos de planear que tipo de recursos vamos recolhendo para construir as cabanas de forma mais rápida que os adversários. Assim que alguém ativa a ação de construção da cabana todas as peças de ação são viradas ao contrário e assim ocultadas novamente, mas sem se alterar a sua localização em volta do tabuleiro. Assim Stone Age Júnior transforma-se também numa versão alternativa do “Jogo da Memória”.

Os componentes são fantásticos, o grafismo delicioso e colorido sem ser confuso. Os recursos são formados por peças grandes de madeira, coloridas, irresistíveis ao toque para cativar as crianças. As cabanas que construímos inserem-se num encaixe próprio na nossa aldeia, simulando a volumetria da construção.

Stone Age Júnior é um pequeno grande jogo. Curiosamente parece ter ainda menos aleatoriedade que o jogo original em que se inspirou. Só é aleatório se tivermos má memória. Está depurado ao máximo. Consegue ser jogado por crianças muito pequenas, mas pode igualmente ser jogado de forma competitiva por adultos, pois pode admite planeamento estratégico e táticas de condicionamento do jogo alheio.  É muito rápido, uns meros 15 minutos chegam!
 
 
Jogo: Stone Age Júnior
Ano: 2016
Avaliador: Micael Sousa
Tipo: Corrida
Tema: História
Preparação: 5 minuto
Duração: 15 minutos
Nº de Jogadores: 2 - 4
Nº Ideal de jogadores: 3
Dimensão: Médio
Preço médio: 35€
Idade: 5+

Qualidade dos Componentes: 10
Dimensão dos Componentes: 10
Instruções/Regras: 9
Aleatoriedade: 9
Replicabilidade: 6
Pertinência do Tema: 8
Coerência do Tema: 8
Ordem: 8
Mecânicas: 8
Grafismo/Iconografia: 10
Interesse/Diversão: 7
Interação: 7
Tempo de Espera: 9
Opções/turno: 6
Área de jogo: 9
Dependência de Texto: 10
Curva de Aprendizagem: 9

Pontuação: 8,41

 

sexta-feira, 1 de setembro de 2017

Tabela de recomendação de jogos de tabuleiro para desenvolver competências específicas - Por Micael Sousa

São imensos os artigos que referem as inúmeras vantagens dos jogos de tabuleiro, eu próprio já escrevi vários textos de opinião de jornais e noutros suportes sobre esse assunto. Existem algumas tentativas de sistematização de recomendações e das características do modo como se devem utilizar estes jogos de tabuleiro, mas para quem desconhece a imensidão da variedade deste mundo pode sentir-se à procura de uma agulha num palheiro.

Em Portugal são poucas as lojas da especialidade e, tanto cá como noutra qualquer parte do mundo, mesmo nas lojas da especialidade nem sempre nos conseguem ajudar quando queremos levar os usos dos jogos de tabuleiro a outro patamar. Em certos locais conseguem-nos indicar e dar sugestões adequadas ao tipo de jogos que procuramos numa perspetiva lúdica, mas quanto ao desenvolvimento de competências através dos jogos é mais difícil.

Inspirado na proposta do Clube de Boardgamers de Leiria ao Orçamento Participativo de Portugal, onde propomos criar KITS de jogos de tabuleiro para aplicação em múltiplos contextos de intervenção social, aproveitando as suas potencialidades, surgiu-me a ideia de criar uma tabela de recomendação de jogos para desenvolver competências que possam ser úteis de trabalhar em contexto educativo. Este é um primeiro draft, contendo bastante subjetividade, que irá com certeza ser desenvolvido e aprofundado. Serve também de repto à comunidade de aficionados de jogos de tabuleiro e curiosos que queiram conhecer mais deste hobby, a quem queira entrar neste processo colaborativo de desenvolver novas abordagens e metodologias mais sistematizadas de aplicação e uso de jogos de tabuleiro em contexto onde se possam desenvolver, de forma estruturada, competências humanas direcionadas.

De seguida a imagem da tabela proposta e o link para poder visualizar em pormenor e comentar, dando-se início ao processo colaborativo.
 
 
NOTA: para votar na proposta ao Orçamento Participativo de Portugal do Clube de Boardgamers de Leiria basta enviar SMS gratuíto para o 3838 com o texto: OPP 702 NIF
O NIF corresponde ao número de informação fiscal.

sexta-feira, 25 de agosto de 2017

Ter tema ou não ter é relevante para a qualidade de um jogo? - Opinião por Micael Sousa

Uma daquelas caraterísticas que surgem quase sempre nas análises de jogos de tabuleiro é a articulação e desenvolvimento do tema com as mecânicas de jogo. Se não estivermos a falar de jogos puramente abstratos isto é bastante relevante. Naqueles jogos em que se invoca um determinado contexto de fundo para o jogo, a avaliação sobre a coerência do tema, e sua relação com o jogo, surgem naturalmente como critérios de avaliação, mesmo que exista quem os desconsidere e ignore e goste simplesmente de jogar aquela mecânica, mascarada do tema A ou B. Por outro lado, para determinadas pessoas, o tema pode ser tudo. Confesso que o tema também me influência, chegando a fazer com que me desinteresse pelo jogo. Pessoalmente, mais que afastar, a afeição a um tema de jogo tende a aproximar e a criar afeição por determinado jogo. Estas preferências são coisas claramente subjetivas mas que podem dar origem a discussões interessantes. Um jogo pode ser um produto de design fantástico, resultado de génios criativos, concretizar-se em simplicidades ou complexidades capazes de cativar os jogadores, mas o tema pode afastar.
 
Fonte da imagem: https://www.pinterest.pt/gameosityreview/board-game-comics/?lp=true

Independentemente do tema, um jogo pode ser reduzido a uma abstração mecânica/lógica, ainda que o fator humano no jogo introduza muitas imprevisibilidades nesse modelo de representação da essência do próprio jogo. Será por um jogo usar cubos e não outra materialidade mais objetiva que terá mais ou menos tema? A materialidade pode ser irrelevante se a dinâmica e relações de jogos produzidas conseguirem criar a sensação de imersão temática que o jogo invoca. Num jogo de temáticas agrícolas ou militares os cubos podem simular tematicamente os recursos ou outros elementos envolvidos no jogo. Mas será que recorrer a coisas abstratas como os típicos cubos não compromete, por si só, a perda de significado? E será a força temática de um jogo apenas dependente da capacidade imaginativa dos jogadores? O jogo ficará sempre aquém do seu potencial sem aquela materialidade de componentes mais alusivos ao tema em causa? Se eu conseguir imaginar, recorrendo à minha criatividade, que pode ser potenciada pelo efeito do grupo com quem jogo, aquele cubo pode mesmo ser um recurso ou representar a capacidade de produzir determinada coisa? E só porque o jogo tem muitas miniaturas, muitos componentes que apelam ao suposto tema, isso chega para ser temático, especialmente quando falham as lógicas do próprio tema? Por outro lado, como sabemos se uma determinada coisa é temática se não a conhecermos? Podemos sentir-nos imersos no tema de construção ou produção industrial se não fazemos ideia como isso se processa na realidade? Se nunca praticamos agricultura ou se nunca fomos ativos num teatro de guerra podemos dizer que aquele jogo nos transporta para a realidade agrícola ou bélica? O tema pode ser só uma simplificação daquilo que achamos que é determinada coisa sem o ser de facto?

O tema do jogo pode relacionar-se com a sensação de realização do jogo, podendo isso depender dos componentes e do seu tema. Uma daquelas sensações positivas que se refere numa análise a um jogo é essa sensação de realização, que me parece só fazer sentido se nos ligarmos de algum modo ao tema e à qualidade dos componentes. Aliás. Podemos ficar satisfeitos por no fim percebemos que conseguimos acumular aquilo tudo, mesmo sendo feijões. Mas se for alguma coisa com outro tipo de significado no conjunto de forma interrelacionada, é mais provável que obtenhamos um sentido de realização mais profundo.

As questões do tema dos jogos remetem para as construções lógicas e para a própria matemática e suas propriedades indutivas. Ou seja, através da matemática e da lógica - que acaba por ser “matemática” -, podemos partir de um conhecimento abstrato particular para chegar um modelo de explicação mais generalista da realidade. Em parte, o desenvolvimento de um jogo obedece a lógicas dedutivas e indutivas, podendo acontecer pelas duas vias. Nos casos em que a mecânica surge primeiro na mente do criador, será um processo indutivo até se chegar a um tema e incorpore essa ideia primordial abstrata. Mas o processo de criação pode ser inverso. Pode surgir primeiro o tema, surgindo depois a respetiva mecânica de jogo que o tenta enquadrar, de forma mais ou menos profunda e coerente. Para além destas opções surge uma terceira, de design integrado em que o tema e a mecânica surgem em simultâneo. Na prática estas explicações estanques e absolutas pouco podem representar a realidade. Como se diz nos jogos, estas explicações “são pouco temáticas” porque não ficamos com a sensação de representar uma realidade que estamos a tentar simular. Estas precedências, entre mecânicas e tema, podem acontecer ao mesmo tempo e alternarem-se durante o processo de conceção. Por mais temáticos que sejam determinados jogos essas criações podem ser reduzidas a modelos lógicos e matemáticos, grande parte deles sistemas que podem ser traduzidos pelas suas equações e variáveis interrelacionadas. Não faço ideia qual das metodologias de criação, se é que as podemos dividir de modo tão claro, produz o melhor jogo. Talvez só os designers de jogos podem responder a essa questão, sendo pouco provável que todos trabalhem segundo as mesmas metodologias.

Como tentei demonstrar, a força das temáticas num jogo podem ser altamente subjetivas. Quando se refere que se aprecia o tema pode simplesmente estar a referir-se que se gosta de estar a realizar ou participar numa coisa que tenha um objetivo e invoque determinado contexto, sem que tenha de ser uma simulação exta daquela realidade. Não nos podemos esquecer de que os jogos, apesar de todas as possibilidades de aplicação, são experiencias lúdicas. As experiências lúdicas são altamente subjetivas, mas quando conseguimos reduzir qualquer jogo à sua essência de abstração podemos avaliar a qualidade dessa realização intelectual, sem com isso podermos aferir da qualidade absoluta do jogo enquanto experiência lúdica.

A título de exemplo, aqui neste blogue tentámos definir alguns critérios para as avaliações dos jogos. Constatámos que, mesmo assim, as avaliações, com base num sistema quantitativo definido, são muito sujeitas à subjetividade. Pessoalmente prefiro um jogo cujo resultado final seja uma integração do tema e da mecânica. Este tipo de reflexão leva-nos para outros assuntos, da inevitável guerra entre “Eurogame” e “Ameritrash”. Este tipo de classificações ainda é marcante no mundo dos jogos de tabuleiro modernos, no entanto, existem cada vez mais híbridos que têm vindo a baralhar estas convenções. 

sexta-feira, 14 de julho de 2017

Que validade têm as reviews, os tops e as avaliações dos jogos? - Opinião por Micael Sousa

Quando começamos aqui com o blogue, eu e o Edgar, pensámos que fazer reviews escritas em português de jogos de tabuleiro pudesse ser útil. Era uma forma de podermos interagir com outros aficionados e de tentar fazer chegar mais informação sobre o mundo dos jogos de tabuleiro modernos a mais pessoas, dando o nosso contributo. Na altura estávamos a criar o Clube de Boardgamers de Leiria, projeto que hoje cresceu consideravelmente e que gerou uma verdadeira comunidade ativa e regular de jogadores em Leiria, desde o típico gamers ao jogador casual. Felizmente hoje esse grupo e clube de Leiria é composto por tantas pessoas que quase já nem as conseguimos enumerar a todas. Desde então, nestes dois anos, o fenómeno dos jogos de tabuleiro cresceu muito em Portugal. Existem imensos grupos e clubes pelo país fora e uma verdadeira multiplicidade de blogues e sítios da internet, páginas de facebook e canais de youtube com conteúdos próprios e regulares em português sobre o tema.
 
Fonte da imagem: https://www.andertoons.com/cartoon-blog/2011/01/cartoon-bear-review.html
 
Decidimos experimentar publicar alguns textos diferentes, mas reflexivos além das reviews.  Constatámos que esses textos se tornaram, de forma esmagadora, os mais vistos e lidos. Alguns geraram tanto interesse que se amplificaram sentimentos de concordância, identificação mas, em alguns, até ódio! Para quem escreve isto é imensamente importante, pois é sinal que as pessoas não ficam indiferentes. Com toda a minha sobranceria, gostava de apelidar estes textos de filosofia do jogo de tabuleiro – só mesmo porque sofro de uma certa dose de parvoíce.
 
Lembrei-me de ir fazer um levantamento de todas as reviews que fiz aqui no blogue, segundo o nosso modelo de avaliação. E obtive a seguinte lista:
Mombasa – 9,22
Troyes – 9,00
Village – 8,54
Ulm – 8,53
Glass Road – 8,46
Caverna – 8,42
Keyflower -  8,40
Nations – 8,36
Broom Service – 8,35
Twilight Struggle – 8,29
Star Realms - 8,28
Eclipse – 8,24
Le Havre – 8,10
Sushi Go! -  8,01
Artifacts, inc. – 7,87
Jaipur – 7,67
Queens Architect – 7,59
Power Grid – 7,32
Puerto Rico – 7,00
Quantum – 6,90
Magic: The Gathering – 6,8
Catan - 5,6
 
Não tenho nenhum top 10 definido, nunca pensei muito nisso. Mas ao avaliar esta lista posso encontrar semelhanças de ordenamento com o que poderia ser um eventual top. Alguns destes jogos desta lista que constariam de certeza no top das minhas preferências. Por outro lado, quando olho para este ordenamento, há jogos que mudava de posição, isto para não falar daqueles que não analisei e que seguramente entrariam no top. Tal leva-me a concluir que, por mais que se definam parâmetros, a sensação afetiva que a experiência de alguns jogos nos causam nem sempre corresponde à avaliação métricas matemática – partindo do princípio que está bem-feita. Há sempre aquele jogo que gostamos muito mas que não sabemos muito bem porquê. Avaliando isoladamente caraterísticas como o tema, os componentes, a mecânica, a interação social que gera, etc. , pode simplesmente não ser suficiente para representar a noção de preferência global, que resulta, acima de tudo, de uma subjetividade das preferências altamente subjetiva. De notar o caso do Keyflower, avaliado por mim e pelo Edgar, recorrendo á mesma matriz de avaliação, mas que gera valores tão diferentes. Se para mim é um grande jogo, para ele tal não é verdade como se comprova pela avaliação quantitativa e qualitativa. Ler os valores das avaliações não é suficiente, por vezes a justificação qualitativa na forma de texto subjetivamente expressivo é obrigatória para perceber o porque daquela atribuição numerária. É por isso que nas múltiplas análises que vou consultando, quer seja dos tops dos Boardgamegeek quer dos reviewers, me importe tanto depois com a justificação quantitativa dos comentários.

Quando fazemos avaliações deste género é impossível não quantificar por comparação, talvez seja por isso que quem avalia jogos e faz tops os ordena simplesmente sem demais critérios excessivamente rigorosos.

Por outro lado, a nossa opinião sobre um jogo pode mudar ao longo do tempo. O jogo pode envelhecer mal ou ser injusto e desadequado comparar um jogo atual com algo que foi publicado há 10 ou mais anos. Nós podemos mudar e o mundo dos jogos de tabuleiro modernos também, pois a dinâmica e inovação têm sido constantes. Os tops valem o que valem, seja lá o que quer que essa expressão também valha, mas são sempre referências interessantes, tal como as avaliações quantitativas. Servem, nem que seja, para discordarmos deles e delas, usando das mesmas justificações a que recorremos para gostar mais de um jogo que doutro.

sexta-feira, 16 de junho de 2017

Problemas com as regras dos jogos - Opinião por Micael Sousa

Já me aconteceu tantas e tantas vezes jogar mal um jogo que perdi a conta de quantas vezes me aconteceu. Cheguei a jogar mal alguns jogos anos seguidos. Pessoalmente sou muito propenso a interpretar e simplificar, usando de atalhos heurísticos e lógica para complementar eventuais lacunas de entendimento. Não gosto de perder muito tempo com pormenores nos jogos de tabuleiro, talvez porque me falte tempo para jogar e experimentar tudo o que quero Apetece-me partir logo para o jogo e experimentar, aprendendo enquanto jogo. O problema é que isto pode ter repercuções quase catastróficas para algumas experiências de jogo. Por vezes uma ou duas regras mal interpretadas são suficientes para mudar completamente um jogo. Curiosamente, até poderia ser positivo, porque “jogamos jogos novos”.
 

Brincadeiras à parte, isto das regras dos jogos faz-me pensar em várias coisas. Primeiro, nem sempre os livros de regras estão bem-feitos. Há jogos onde é simplesmente impossível de jogar com os livros de regras originais. Com sorte conseguimos, na comunidade online, especialmente no Boardgamegeek encontrar solução. Por outro, certos jogos têm regras demasiado complicadas, cheios de exceções e casos particulares – parecem a legislação portuguesa. Por vezes, apesar de estar textualmente bem escrito, as interpretações são dúbias, o que gera também problemas, ou então quando as regras parecem avulsas e sem coerência temática ou de conjunto com o espírito do jogo.

Quando temos muitos jogos, quando já experimentamos muitas coisas e quando apenas se levou à mesa uma ou duas vezes essa imensidão de jogos é mais comum errarmos ao jogarmos de cor sem consultar as regras do jogo escolhido, daí os atalhos heurísticos.

O facto de existirem imensos jogos de tabuleiro, cada um com as suas regras próprias, é uma vantagem e desvantagem para o hobby. Não é fácil atrair uma pessoa que lide mal com o tempo longo de explicação de regras, especialmente quando tem pouca experiencia de jogo. É muito comum ter apenas 5 minutos de tolerância para lidar com a novidade, fazendo de imediato um juízo de valor. Por isso, nem todas as pessoas vão aguentar ouvir com atenção, e capacidade de interiorização, explicações de jogos que demoram meia hora e mais. No fundo é como estar passivamente numa aula! Do ponto de visa positivo, toda a variedade, permitem experiências inesgotáveis, o que também pode ser positivo e negativo, dependendo dos gostos de cada jogador.

Parece-me que a obrigação de aprender novas regras seja um dos fatores que pode contribuir para afastar as pessoas dos jogos de tabuleiro. Por norma só cumprimos regras se formos obrigados, e no lazer, seguir um regulamente, não é das coisas mais estimulantes, pelo menos para a maioria das pessoas. Mas claro que ninguém, no seu perfeito juízo vai colocar uma pessoa sem experiência a experimentar um jogo pesado. Podemos sempre começar por coisas mais simples, com poucas regras. Se a pessoa gostar então pode dar ou não o salto para coisas mais substanciais. O problema é que isso nem sempre acontece e que são as próprias pessoas que se recusam a começar pelo básico.

Dei o exemplo anterior como um dado absoluto que representa a maioria das pessoas, mas devem existir muitas exceções. Eu talvez seja um caso à parte, pois adoro aprender e conhecer jogos novos, apesar das regras se misturarem e de inventar quando sinto lacunas. Por mim estava sempre a experimentar coisas novas, fazer 3 ou 4 jogos para melhor perceber a criação em causa e depois avançar para outro. Mas falta o tempo, na prática só se consegue levar à mesa o mesmo jogo com intermitência, ficando todos os demais à espera. Com isso as regras vão-se misturando e depois, sem saber, acabamos por poder estar a desvirtuar grandes jogos, contaminando e criando ideias erradas sobre eles.

Serei o único a passar por isto?

sábado, 13 de maio de 2017

Quantas vezes tenho que jogar um jogo antes de o poder analisar? - Opinião por Pedro Sousa e Silva

Embora este blog cada vez mais se dedique a reflexões e artigos de opinião sobre aspetos transversais aos jogos de tabuleiro e seu impacto fora da mesa, não deixa de ser verdade que na origem do blog estava a intenção de fazer análise dos jogos e que essa modalidade de artigo continua a aparecer de vez em quando.

Não é só nos jogos que a possibilidade de obter opiniões e análises criteriosas acerca dos artigos antes de os comprar se revelou uma vantagem significativa para o consumidor, tanto que a maioria das grandes lojas online, como a Amazon por exemplo, permitem aos utilizadores deixar as suas opiniões sobre os artigos comprados. Nos jogos de tabuleiro, esta questão torna-se particularmente relevante pois os jogos tendem a ser caros e a variedade é imensa, sendo difícil aferir a qualidade do produto antes de o jogar - tal como não se pode julgar um livro pela capa, não se pode julgar um jogo de tabuleiro pela caixa.

Fonte da imagem: http://www.savagechickens.com/2010/01/board-game.html

Assim, veio a ser cada vez mais relevante o papel dos analistas de jogos na comunidade de jogadores de jogos de tabuleiro, tendo-se mesmo estabelecido alguns que se tornaram famosos nessa prática, como por exemplo o “Rahdo runs through”, os “Shut up and Sit Down”, ou a “Dice Tower Reviews”. Também o essencial website Boardgamegeek desempenha um papel de grande utilidade ao coligir informações, avaliações, opiniões e dados estatísticos sobre os jogos através dos contributos da comunidade. E não faltam pequenos revisores de jogos que, não sendo muito salientes na internet, dão os seus cinquenta cêntimos em plataformas como este blog.

Com tanta gente a analisar jogos, chega-se a um ponto em que existe tanta informação disponível, por vezes contraditória (não temos que gostar todos do mesmo!), que começaram a ser discutidas questões sobre a qualidade das análises, surgindo algumas observações pertinentes e outras que colocam em causa a legitimidade de certas publicações.

E a questão que quero abordar entra em ambas categorias: quantas vezes tenho que jogar um jogo antes de o poder analisar?

Esta questão é pertinente pois os jogos de tabuleiro habitualmente têm uma complexidade intrínseca, e mesmo quando as regras são simples é normal depararmo-nos com uma profundidade estratégica inesperada. Raro é o jogo onde não exista uma curva de aprendizagem relevante, e será justo aplicar o provérbio de que “o primeiro milho é para os pardais”, na medida em que na primeira vez que se joga todos os jogadores estão ainda a explorar o jogo sem uma noção estratégica definida, sendo a primeira vitória um fraco indicador de competência futura.

Há, no entanto, quem não tenha pejo em avaliar jogos - mesmo os complexos - logo após a primeira vez que o jogam. Tendo em conta o que escrevi acima, isto faz algum sentido? Como é que alguém pode pronunciar-se sobre um jogo que ainda nem sequer compreendeu? É com este argumento que algumas pessoas colocam em causa a legitimidade de algumas análises e apenas reconhecem valor à opinião de quem é muito batido no jogo que avalia, mas eu acredito que esta é uma falsa questão.

Basta refletir sobre os hábitos de um típico jogador que assumo corresponder ao perfil dos nossos leitores: tem a sua modesta coleção de jogos que gosta de ir aumentando ocasionalmente, desloca-se a encontros de boardgamers para jogar com amigos e experimentar coisas novas. Tal como o Micael opinou neste artigo, existe uma tensão permanente entre regressar aos jogos favoritos ou experimentar jogos novos - com tanta oferta disponível, nunca sabemos se aquele jogo que alguém trouxe hoje vai ser o nosso novo favorito, mas sendo o tempo um recurso tão curto, temos frequentemente que optar entre regressar ao velho favorito ou experimentar essa novidade, não sendo possível fazer ambos.

Isto leva a que sejam muitos os jogos que até nos pareceram interessantes e seríamos capazes de experimentar outra vez com uma estratégia mais bem delineada, mas na prática não voltamos a jogar pois há sempre outras novidades ou outros jogos aos quais temos mais urgência em regressar.
Portanto, se aceitarmos esse facto que existirão muitos jogos que realmente só jogaremos uma vez, torna-se fácil perceber a relevância de análises feitas por quem só jogou os jogos uma vez: as opiniões escritas por quem só teve a primeira impressão do jogo e nunca descobriu as suas nuances mais profundas é uma representação mais fiel da experiência que provavelmente terei quando EU também só for jogar o jogo uma vez e da mesma forma não descobrir essas nuances. Para estimar qual será a minha primeira impressão de um jogo (que frequentemente determinará se ele volta a ser jogado), a análise mais fiel é a da primeira impressão de outrem! Muitas qualidades que só podem ser encontradas ao regressar ao jogo simplesmente não se aplicariam na minha situação se eu próprio não regressar, e então sentir-me-ei defraudado por uma análise que explore todas essas qualidades para eu depois não as encontrar na minha experiência de jogo.

Do modo como eu vejo esta questão, o grau de envolvimento e regresso a um jogo determina a experiência que se obtém dele: alguns são muito giros mas esgotam-se depressa, outros começam por ser um frete mas acabam por se tornar altamente interessantes. Cabe a cada um saber o que pretende ou espera realisticamente obter do jogo sobre o qual se está a informar, e então ir em busca das análises que correspondam a esse tipo de utilização.

Termino esta reflexão sugerindo que em futuras avaliações de jogos neste blog passe a constar também a informação de quantas vezes o avaliador já o jogou.

sexta-feira, 5 de maio de 2017

O design gráfico e os componentes influenciam a qualidade dos jogos de tabuleiro - Opinião por Micael Sousa

É inegável que o desgin gráfico nos jogos de tabuleiro tem evoluído bastante. Se há uns anos eram os jogos de estilo americano, coleccionáveis, associados a marcas registadas, de acção e conflito dinâmico que apostavam mais no design gráfico e na qualidade dos componentes, hoje já não é bem assim.

Se antigamente o típico jogo de estilo europeu, de gestão, estratégico, onde as mecânicas de jogo sobressaiam por si apesar do pouco impacto visual dos componentes materiais do jogo, agora a realidade parece ser outra. Parece que estamos a chegar ao fim dos jogos feios e por isso mais baratos, independentemente da qualidade e experiencia de jogo vividas que proporcionam. Bem, isto não é toalmente verdade. Não se pode generalizar de forma absoluta porque a componente gráfica pode mudar muito a experiência de jogo, podendo um singelo cubo ser mais impactante num modelo de jogo que noutro. Sem o mínimo de tratamento gráfico o jogo pode ficar muito difícil ou até impossível de jogar. Quando o design gráfico é mau ou inexistente nos tabuleiros, cartas e outros elementos de jogo os próprios jogos podem ficam impossíveis de ler e apreender de forma agradável. Ou seja: onde termina o meu território?; que cor é esta?; isto aponta para onde?; não consigo ler isto!; os cubos não cabem aqui!;  isto não encaixa!; este “setup” do jogo é impossível!; estas imagens são horríveis!; isto é anacrónico para esta época histórica!; isto é simplesmente feio!; O quer dizer isto?

 A questão que queria lançar passa por tentar perceber se na prática o design gráfico é assim tão importante e influencia a qualidade geral do jogo?

Convém reforçar aqui as minhas preferências pessoais. Sou um claro eurogamer, prefiro a gestão e dinâmica dos jogos de tabuleiro de inspiração alemã, embora também jogue outras coisas mais hibridas. Talvez só na perspetiva de um eurogamer é que estas observações podem fazer algum sentido, se é que fazem algum sentido de todo.

Provavelmente vamos deixar de ver tantos jogos cujos componentes são apenas alguns cubos de madeira ou uns meeples sobre um tabuleiro ou cartas que não impressionam visualmente. Alguns jogos de tabuleiro da era moderna, mas já clássicos, estão a apostar em reedições com mudanças gráficas relevantes e melhoria nos componentes. Apesar disto poder agradar e captar a atenção de novos jogadores os preços aumentam, por vezes quase para o dobro.

Os jogos tendem a ser mais caros, com produções mais elaboradas e originais; Influenciam a experiência de jogo e captam mais a atenção de quem observa de fora, sendo evidente a importância do papel do designer gráfico no produto final. Parece-me também que o aprimoramento das mecânicas dos jogos de tabuleiro, que foi surgindo a partir dos anos 90, está agora a chegar ao design gráfico e de componentes, tendendo para um design integrado cada vez mais forte. O uso de miniaturas diferenciadas é uma tendência inegável. O grafismo dos tabuleiros com cores mais vivas e exuberantes, iconografias próprias, elementos físicos adicionados para simular aleatoriedade e outras dinâmicas de jogo vão sendo adicionados. Os próprios componentes estão mais interrelacionados com as diferentes mecânicas de jogo, com produções próprias mais dispendiosas é claro. Por vezes essas mecânicas são semelhantes a coisas já feitas, mas a nova oportunidade de as conjugar com novas peças físicas pode criar novas experiências pro si só e um modo jogar o jogo diferente.

Será então que estas mudanças gráficas são relevantes e nos fazem optar por um jogo e não por outro, que as utilize ou dispense?

Admito que isso pouco me importava, mas agora sou levado a preferir produtos mais bem desenhados graficamente e com componentes próprios e originais, mas cada caso é um caso. Agradam-me miniaturas, mesmo que não sejam híper realistas, mas que representem e encaixem bem no jogo, que sejam relevantes para o exercício de o jogar. O facto de ter mais umas peças para ajudar á simulação agradam-me, pois melhoram o potencial da experiência. No entanto, ter simplesmente umas peças novas e mais interessantes não é condição suficiente para o jogo ser bom, trata-se apenas de melhorar o que por si já deveria ter qualidade ou ter potencial de com essas adições vir a ser ainda melhor. Cubos bonitos, miniaturas animadas, peças que se movimentam no tabuleiro podem ser interessantes, mas por si só não fazem um bom jogo de tabuleiro.

Estas preferências podem ser subjectivas – e são seguramente -, mas o nosso mundo de consumo é altamente influenciado pelas técnicas de marketing e de design de produto. Por vezes o produto, na sua essência, pode mudar e fazer crescer o interesse do mercado por ter um tratamento cosmético. Mas quando se leva o design mais a fundo, para além das aparências exteriores, a satisfação com o produto pode ser muito maior. Assim, por mais que valorizemos as mecânicas de jogo e experiencias imateriais que o próprio jogo proporciona, o aspeto gráfico e físico não podem deixar de ser considerados num jogo de tabuleiro, como em quase tudo o que seja produção humana utilitária e criativa.

Em resumo, o que pretendo dizer e sou levado a concluir é que o futuro dos jogos de tabuleiro passa pela produção de produtos que devem resultar de uma integração de concepção de design gráfico, de materiais e das mecânicas de jogo. Parece-me que está a chegar ao fim a era das colagens e aproveitamentos de elementos indiferenciados. Estaremos a entrar na era do design integrado aplicado aos jogos de tabuleiro?

sexta-feira, 28 de abril de 2017

Como a Paralisia de Análise destrói um jogo de tabuleiro - Opinião por Micael Sousa

A sociedade contemporânea esmaga-nos por exigir a nossa ubiquidade constante, agora possível porque estamos sempre online. O tempo parece encolher e o rol de atividades intermináveis asfixia o comum dos mortais que queira ser minimamente contemporâneo. Basicamente temos falta de tempo para tudo o que queremos fazer.
Tradução: Gervásio não se importava de esperar mais de uma hora enquanto o Quim contemplava a sua jogada, mas quando o Quim disse. "Oh é o meu turno?"
Fonte da imagem: https://venturacountyboardgamers.com/articles/analysis-paralysis/

Mas que tem isto que ver com os jogos de tabuleiro? Tem tudo! Os gamers já conhecem o termo AP, que não é mais que a sigla em inglês de Analysis Paralysis. Em português podemos traduzir por Paralisia de Análise, ou seja, é aquele tempo em que alguns jogadores param para pensar as jogadas, deixando todos os demais em suspenso à espera. Considero que o AP é uma característica cada vez mais relevante na hora de escolha e avaliação de um jogo, tanto que volto ao tema novamente. Assumo que sou muito intolerante ao AP – quase tanto como aos jogos cooperativos que são dominados por um alfa player - e que me enerva estar muito tempo à espera das jogadas dos restantes jogadores, por vezes dezenas de minutos, quando as minhas jogadas, habitualmente, demoram segundos, pois resultam de um processo heurístico conjugado com planeamento prévio.
Poderá a AP ser um ato de egoismo e desconsideração pelos restantes jogadores? Será que quando estão a pensar excessivamente nas jogadas esses jogadores pensam que estão, acima de tudo, a destruir o jogo para os restantes companheiros de partida? Provavelmente pode ser mera incosciência e incapacidade de lidar com tanta informação e opções. Algumas pessoas têm simplesmente dificuldade em decidir. Nesses casos, os jogos de tabuleiro são uma excelente ferramenta para lidar com essa incapacidade, o problema é que os jogadores que não padecem de AP é que sofrem na pele. Por outro lado, esta experiência da AP pode servir para demonstram na prática as nossas diferenças individuais. Não somos todos iguais, e nem sequer pensamos da mesma maneira, isto no sentido do que valorizamos ou na prática que temos, tal como o tempo que achamos adequado gastar no ato em si.

Vou tentar colocar de lado esta tendência para o particularismo do egoísta, em falar de mim e das minhas frustrações. Mesmo que não se enfureçam com o tempo que esperam pelas jogadas alheias, penso que todos admitimos que a AP de alguns jogadores e de alguns jogos podem destruir uma experiência de jogo. Em alguns jogos existe maior propensão para que isso que outros, tal como jogadores que são incorrigivelmente mais demorados que o comum dos mortais. Por vezes parece ser uma estratégia para enervar os outros – pronto lá estou outra vez a pensar no meu caso particular. Lembro-me de uma partida a 3 jogadores de Quantum que demorou perto de 3 horas. Obviamente nunca mais quis jogar o jogo.
Fonte da imagem: https://blog.todoist.com/2015/07/08/analysis-paralysis-and-your-productivity/

Mas como lidar com isto? Podemos evitar jogar com jogadores que demonstrem uma AP recorrente, mas isso destrói um dos aspetos mais relevantes dos jogos de tabuleiro como hobby: o convívio presencial lúdico que reforça os laços humanos. Podemos evitar os jogos mais suscetíveis de induzir AP nos jogadores, mas também aí podemos estar a colocar de lado excelentes jogos.

Como fazer então? Alguns jogadores incorrem na AP por indisciplina de jogo. Ou não conseguem definir a sua jogada quando o turno dos outros jogadores está a decorrer ou simplesmente distraem-se e só se apercebem quando é a sua vez de jogar. Bem sei que é impossível planear previamente em alguns jogos, pois as condições de jogo mudam jogada a jogada, mas em muitos jogos é possível evitar isso, no entanto é aconselhável ter uma ideia do que se pretende fazer ou ter múltiplas opções previamente pensadas. Podemos também limitar o número de jogadores, para ser mais reduzido o tempo total de jogo. Podemos jogar também apenas com pessoas que já dominem o jogo, pois isso habitualmente resulta em tempos de jogo mais curtos. Seja como for, estas duas últimas opções podem ter efeitos negativos nos laços afetivos entre a comunidade ou grupo de jogadores.

Gosto de jogar jogos longos, mas tenho de sentir que estou a jogar e não simplesmente a assistir a uma partida alheia. Isto é algo que me preocupa sinceramente. Quando escolho adquirir um jogo para a minha coleção uma das primeiras coisas que vou estudar é o tempo de jogo, pois já sei: com o pouco tempo disponível que tenho e com a recorrência da AP, seguramente o tempo efectivo de jogo será tanto que nunca terei oportunidade real de jogar o dito jogo.

Resta tentar encontrar um equilíbrio para que a experiência de jogo não seja destruída e para não destruir também amizades que se fundam nos jogos de tabuleiro.

sexta-feira, 7 de abril de 2017

Broom Service - Análise por Micael Sousa

"Estou com um bocado de pressa porque tenho de fazer poções mágicas para entregar, é que isto tem sido uma correria aqui na empresa e nem sempre é fácil gerir os colaboradores, pois alguns andam sempre armados em corajosos e depois não fazem nada."


Isto podia ser um desabafo de uma das bruxas de Broom Service. Este jogo de Andreas Pelikan e Alexander Pfister venceu o prestigiado Kennerspiel des Jahres em 2015, pelo que é impossível não ficarmos pelo menos um pouco curiosos. Mas será um típico eurogame?

Não, nem por isso, ou nada disso mesmo. O tema de Broom Service começa por ser original. Supostamente estamos a gerir uma empresa de bruxas, druidas, gnomos e fadas. A nossa empresa tem como grande objetivo a distribuição de poções mágicas. Para isso temos de conseguir produzir poções e distribui-las mundo fora. As nossas bruxas são especialistas em viagens, os druidas na entrega das poções desejadas, os gnomos na gestão da matéria-prima e as fadas na dissipação do mau tempo atmosférico que nos prejudicaria o negócio. Bem, mas isto assim parece mais um jogo de gestão disfarçado. Tem um pouco de gestão, mas é, acima de tudo, um jogo de apanha de bens e entregas, do género “pick up and delivery”.

A grande originalidade do jogo é o mecanismo que nos permite arriscar e tomar decisões estratégicas que potenciam as nossas acções. Podemos ser grandes cobardes ou herois corajosos, e isso pode mudar tudo, o nosso jogo e o dos adversários, pois Broom Service acaba por ser bastante interactivo e quase uma corrida.

Passemos às mecânicas. Cada jogador tem exactamente duas bruxas no mapa de tabuleiro, composto por vários tipos de terreno que podem ser visitados se forem jogadas as cartas de bruxa indicadas para lá chegar. Cada jogador tem também um conjunto de cartas extamente igual, composto: por 4 cartas de bruxa, que permitem mover as peças do tabuleiro para o tipo de terreno indicado; 2 druidas que permitem entregar poções de acordo com o tipo de terreno em causa, sendo que cada um deles funciona em dois tipos de terreno diferente; 3 gnomos, que permitem produzir varinhas mágicas e os 3 tipos diferentes de poções; 1 fada das nuvens, que permite gastar varinhas mágicas para fazer desaparecer as nuvens e possibilitar a passagem por esses terrenos. De notar que o objetivo é entregar poções em torres que existem no mapa, cada torre tem uma das 3 cores correspondente aos 3 tipos de poções. Sempre que uma entrega se faz com sucesso o jogar que a concretizou ganha pontos de vitória, as torres mais valiosas são as que estão mais distantes da posição inicial das bruxas. Algumas destas torres permitem receber infinitas poções, enquanto outras apenas permitem uma entrega, o que gera um efeito de corrida.

Mas o que torna Broom Service diferente é o efeito de aposta, do “push your luck”. Pois é, podemos sempre optar, em todas as acções, por fazer a versão cobarde ou corajosa da carta. As acções cobardes permitem executar de imediato a acção quando ativamos a carta. As acções corajosas só podem ser efectuadas se nessa ronda mais ninguém jogar a mesma carta de forma corajosa, sendo que só faz a acção corajosa o ultimo jogador a colocar a carta na mesa. Ou seja, os outros jogadores corajosos não jogam a ronda se outro jogador invocar a mesma carta segundo a ordem de jogo. Como só levamos 4 cartas por turno a jogo, escolhidas daquele baralho que é exactamente igual para todos os jogadores (apenas mudando a cor), não sabemos quais as cartas que os outros jogadores têm na mão. Porque os jogadores são obrigados a jogar as cartas da mão que tiverem iguais àquela que foi invocada pelo primeiro jogador dessa ronda gera-se um efeito de incerteza estratégico, mas para o qual podemos recolher indícios no tabuleiro e se estivermos a acompanhar as jogadas dos nossos concorrentes. De notar que as acções corajosas são muito melhores que as cobardes e fazem mesmo a diferença no desenrolar do jogo.

Cada jogo de Broom Service é composto por 7 turnos e múltiplas rondas. Em cada turno é revelada uma carta que muda algumas das regras para esse turno. O turno desenrola-se do seguinte modo: decide-se quem é o primeiro jogador; o primeiro jogador invoca a sua carta, dizendo se faz a acção cobarde ou corajosa da carta; na ordem do ponteiro dos relógios os restantes jogadores jogam, respetivamente e na sua vez, a carta invocada anteriormente caso a tenham entre as 4 escolhidas para o turno, escolhendo se querem fazer a acção cobarde ou corajosa; de seguida o próximo jogador é aquele que fez com sucesso uma carta corajosa ou o jogador a seguir na ordem dos ponteiros do relógio, caso não tenha existido acção corajosa nessa ronda.

Isto tudo para explicar que esta mecânica das acções cobardes e corajosas e das 4 cartas que vão a jogo cria uma experiência de jogo interessante, bastante interativa e por vezes hilariante. Quem não acha divertido dizer “Sou uma bruxa cobarde da floresta”, pois o jogo diz que devemos enunciar e dizer com todas as palavras se somos cobardes ou corajosos.

Para além da gestão dos recursos, das acções, da dinâmica no mapa, de um planeamento de longo prazo, existe a necessidade de ler as jogadas dos adversários para os antecipar tal como o seu comportamento, isto enquanto nos preocupamos em parecer sérios também e algo dissimulados. Poderiamos sempre optar por fazer acções cobardes e seguras, mas quem não arrisca no momento certo perde o jogo. Depois, é irresistível fazer as acções corajosas, pois são muito mais poderosas que as cobardes. Temos uma experiência prática e simplificada de como a ganância nos pode atraiçoar, mas de uma forma divertida.

Parece-me que a solução de cartas penalizadoras quando o jogo se joga com menos de 5 jogadores são excessivamente penalizadoras, podendo prejudicar demasiado certos jogadores de forma aleatória, algo que pode ser irritante.

Para finalizar. O jogo termina no 7 turno e ganha quem tiver acumulado mais pontos de vitória através das entregas que fez, somando-se pontos pelas combinações dos vários recursos sobrantes e das nuvens, sendo que estas últimas podem valer muitos pontos (sempre que removemos uma nuvem com uma fada ganhamos a peça da nuvem que tem indicação da carga elétrica que tinha, sendo que quantos mais cargas destas acumularmos mais pontos recebemos também no final). Existem mais umas variantes para tornar o jogo mais complexo e ter mais variantes aos pontos de vitória.
Então para mim o Broom Service é um daqueles jogos a ter na colecção, pois é divertido e a sorte que tem associada é controlável. É aquele tipo de jogo bom para aliviar de algo mais pesado, mas que tem decisões interessantes para explorar e que causa sensações que não nos deixam indiferentes.
A arte e o design gráfico do jogo são belíssimos!

Jogo: Broom Service
Ano: 2015
Avaliador: Micael Sousa
Tipo: Entregas
Tema: Fantasia
Preparação: 5 minuto
Duração: 75 - 90 minutos
Nº de Jogadores: 2 - 5
Nº Ideal de jogadores: 5
Dimensão: Médio
Preço médio: 40€
Idade: 10+

Qualidade dos Componentes: 8
Dimensão dos Componentes: 9
Instruções/Regras: 9
Aleatoriedade: 7
Replicabilidade: 8
Pertinência do Tema: 9
Coerência do Tema: 8
Ordem: 9
Mecânicas: 7
Grafismo/Iconografia: 10
Interesse/Diversão: 9
Interação: 9
Tempo de Espera: 9
Opções/turno: 7
Área de jogo: 9
Dependência de Texto: 9
Curva de Aprendizagem: 9

Pontuação: 8,35

sexta-feira, 31 de março de 2017

Brincar com coisas sérias - Opinião por Pedro Sousa e Silva

A utilização dos jogos de tabuleiro para causas sociais tem dado que falar em Leiria nos últimos tempos, a julgar pelas várias menções do assunto nos jornais locais. Na mais recente, foi mencionada a parceria do Clube de Boardgamers de Leiria com o projeto Rua Direita e eventos feitos com jovens do Lar de Santa Isabel, do Internato Masculino de Leiria, no Estabelecimento Prisional de Leiria, no serviço de Pediatria do Hospital de Leiria, em várias escolas e ainda na Universidade Sénior da Marinha Grande.
 
Há espaço para todos no nosso clube

Não será já presunção destes jogadores, andarem a meter o nariz em tantas realidades diferentes e acharem que faz sentido espetar jogos em todas? O que é que realmente estão a contribuir quando fazem estes eventos, para além de aproveitarem qualquer oportunidade para ir disfrutar do seu passatempo, chamando-lhe causa social?

Bom, antes de mais, convém deixar algo bem claro: enquanto membro do clube e organizador destas coisas, posso atestar solenemente pela minha honra que nestes eventos não há lugar à fruição dos jogos em si, porque passamos o tempo todo a aconselhar, ensinar, explicar, apoiar, e nunca temos oportunidade para jogar propriamente dito. Portanto, nos eventos não estamos de todo a fruir do nosso prazer em jogar jogos, mas sim a fazer um trabalho de voluntariado ao dá-los a conhecer aos outros.

Então, e porquê fazer esse sacrifício? Será que acreditamos assim tanto no poder dos jogos de tabuleiro a ponto de achar que vale a pena perder o nosso valioso tempo com esta atitude de evangelização? Bom… Sim, acreditamos. Passo a explicar:

- Em algumas das realidades acima enumeradas, proporcionam às pessoas uma oportunidade de ocupar tempo livre de uma forma divertida que oferece alternativas a um ambiente menos estimulante. Por exemplo, às crianças internadas no hospital é dada uma oportunidade de se distanciarem da conotação negativa do ambiente hospitalar (doença, vulnerabilidade, falta de autonomia) e entrarem num ambiente mais familiar, imaginativo e estimulante.

- É habitual falar-se de como os jogos de tabuleiro promovem o desenvolvimento cognitivo através da necessidade de planeamento estratégico, antecipação das jogadas do adversário e flexibilidade táctica, mas nem tantas vezes se destaca o seu papel no desenvolvimento de atitudes e comportamentos positivos. Por exemplo, os jovens do Internato Masculino de Leiria adoptaram de forma quase intuitiva uma postura de respeito das regras do jogo, cumprindo as restrições por estas impostas, esperando pela sua vez de jogar, e sendo visível mesmo a aprendizagem de como lidar com a derrota com desportivismo e encarando-a como uma oportunidade de melhorar na próxima oportunidade.

- Os jogos de tabuleiro exigem ser jogados presencialmente, convidando ao contacto e à conversa com os outros jogadores, criando uma aproximação que contraria a tendência crescente de isolamento que nos têm trazido os videojogos e as redes sociais. À volta da mesa de jogo criam-se amizades tangíveis e também se aproximam gerações, como verificámos quando netos e avós se juntaram para jogar no evento da Universidade Sénior.

Estas considerações procuraram evidenciar apenas alguns dos benefícios dos jogos de tabuleiro, de um ponto de vista não apenas teórico mas sim consubstanciado pelo que a prática nos tem mostrado, e que este artigo tentou demonstrar. Não somos só uns maníacos que só querem ver jogos em todo o lado, regemo-nos pelo feedback recebido e pela avaliação contínua daquilo que fazemos. E com base nisso podemos afirmar que quando vamos levar os jogos às pessoas, a reacção costuma ser muito semelhante mesmo entre públicos distintos: Primeiro estranha-se, depois entranha-se.

segunda-feira, 27 de março de 2017

O Meeple Roxo e Contemporaneidade - Opinião por Edgar Bernardo

No início os meeples tinham cores primárias e delas evoluíram para múltiplas tonalidades e variedade. O meeple roxo sempre sentiu inveja dos outros meeples. A sua cor não era muito procurada nem desejada, mesmo sendo uma cor mais recente, mais próxima da curva avançada do evolucionismo do espectro. Muitas são as vezes que vê os outros meeples a participar nos jogos de tabuleiro desde a distorção do plástico que o resguardava. É muito difícil ser diferente. Só nos últimos anos é que o roxo teve a oportunidade de ser colocado sobre a mesa, mas não como jogador. O roxo é às vezes usado como recurso em forma de cubo ou de disco. O meeple roxo tem então ainda menor hipótese de ser tocado por jogadores.
 

Volta e meia lá surge um jogo que permite o meeple roxo entrar em acção, mover-se pelo tabuleiro, avançar sobre a marcação dos pontos... “O que é aquilo?” - pensava o meeple roxo quando viu um tabuleiro a ser jogado lá longe noutra galáxia rectangular. Os meeples já foram trocados por discos, por cubos, por cartas, mas algo novo parece ganhar espaço, ganhar espaço aos meeples. Se os meeples perdem espaço, então o que acontecerá aos meeples, como o roxo, que não têm tantas oportunidades de ir a jogo?

Plástico. Que espécie nova é esta que não respeita os materiais da criação boardgamer? O cartão e a madeira estão ameaçados por este novo material vindo das profundezas da terra. O meeple roxo condena e despreza o meeple plástico, essa nação de meeples novos que também emergem como hordas bárbaras e em várias cores. Meeples plásticos que são transportados em sacos também de plástico... não há dúvida, são o profano dos jogos de tabuleiro, o incesto praticado entre o conteúdo e a portabilidade. O que virá a seguir? Tabuleiros de plástico? Caixas de plástico? “Malditos hipsters da contemporaneidade!” - acusa indignado.

O meeple roxo despreza estes novos meeples de plástico, como versões robotizadas do homem para os humanos, estes totems de plásticos são leves e cicatrizados, não mantêm a forma amorfa e genericamente antropomórfica que chegou faz milhões de anos meeples. O meeple convencional é reconhecido pela sua simplicidade, mas este, este é escravo da vaidade. Este pinta-se, decora-se e exibe-se: “Este não viverá em sacos de plástico. Deve viver na gaveta de uma mala de mulher!” - afirma repugnado. Da estética à forma definida. O meeple roxo tem orgulho da sua forma vaga e não rotulada, mas o de plástico tem toda a sua forma bem desenhada, aperfeiçoada e desenhada com precisão a laser. O ginásio do plástico é a impressora e o molde de onde nasce e é definido, e como os ginásios dos homens, está cheia de quem procura atingir ideais de beleza por motivos de vaidade e não por princípio. Os jogadores humanos vão deixar de imaginar e projetar a sua imaginação nos totems de jogo, e vão passar a estar condicionados pela definição exata de quem os criou.

O roxo está indignado. O progresso não pode ser travado. Quem salvará o meeple roxo? Não há quem o queira, quem o procure fazer... mas ele tem um plano, ele sabe que divindade o permitiu. Ele sabe quem o castigou pessoalmente. A internet, as plataformas para o consumo diferenciado, e o programas de kickstarter e afins... a tríade babilónica na versão profano do meeple. Que fará o meeple roxo para evitar ou contornar esta realidade e voltar a ser o que era antes? “Antes esquecido que substituído!” - reforça o meeple a si mesmo. “Um dia... um dia... o lugar no saco será novamente nosso! Um dia... o plástico não profanará o plástico, e o meeple, o meeple será de novo só de madeira... sim, MADEIRA!”.

sexta-feira, 17 de março de 2017

Nations – Análise por Micael Sousa

Adoro jogos de construção de civilizações. Quando ainda tinha tempo para jogos de computador eram os meus preferidos. Posteriormente apercebi que era um subtema relevante nos jogos de tabuleiro e fiquei obviamente entusiasmado. Existem vários jogos de tabuleiro que encaixam no tipo “construção de civilização”. Será que o Nations se destaca dos restantes?
 
Fonte da imagem: https://opinionatedgamers.com/2013/12/12/nathan-beeler-review-of-nations/

Em Nations cada jogador desenvolve a sua civilização ao longo de quatro eras: antiguidade, medieval, renascença e industrial. Ao contrário de outros jogos de civilizações não existe um mapa de território onde se coloquem edifícios e unidades produtivas ou militares. O que existem são tabuleiros individuais que registam o desempenho económico, cultural, as principais infraestruturas, poder produtivo e capacidade militar individual. Aqui gerimos recursos e podemos fazer diversas melhorias materiais à nossa civilização, tal como balancear o seu desenvolvimento civilizacional, tanto pela especialidade numa determinada área ou por uma conjugação de várias opções diferentes. Ao nosso tabuleiro individual podemos adicionar cartas de edifícios, maravilhas (wonders), colonias, conselheiros, etc. Temos meeples que representam a população, que podemos atribuir aos edifícios (cartas) definindo a capacidade produtiva de recursos, cultural, estabilidade ou poder militar. Penso que dá para ficar com uma ideia de como o tabuleiro individual é modular e pode ser configurado consoante a estratégia pessoal e o rumo que queremos dar à nossa civilização.

Depois existem dois outros tabuleiros de uso comum. Num estão as cartas que podem ser compradas para adicionar aos tabuleiros individuais. No outro faz-se o registo dos níveis de cultura, poder militar, eventos, eras, estabilidade e arquitectos disponíveis para construção das maravilhas (wonders).

Existem várias civilizações para escolher, com características bem diferentes. Existem muitas cartas diferentes também. Apenas veremos uma pequena fracção delas em cada partida, tornando cada jogo diferente e aumentando a replicabilidade do mesmo. A conjugação diferentes das cartas, das civilizações e das decisões dos jogadores criam em cada partida uma nova história de civilizações. Se juntarmos a expansão dinastias o jogo fica ainda melhor e mais variado.

De notar que estamos perante um jogo de tipo europeu (eurogame) onde a interactividade existe mas é limitada, sendo impossível destruir uma civilização adversária (jogador adversário). No fim ganha quem tiver mais pontos, sendo muitos os caminhos e possibilidades para os obter. Existem guerras, mas têm um efeito destrutivo limitado, podem fazer perder pontos de vitória e recursos, mas apenas isso. Os eventos podem ser calamidades, havendo uma tendência os tentar enfrentar e sobreviver o melhor possível, com o posicionamente relativos dos jogadores nos vários rankings puder influenciar os resultados, o que provoca uma interatividade renovada a cada turno. Isto pode ser visto como uma interactividade indirecta. O mesmo acontece para a compra dos edifícios, que uma vez comprados ficam apenas disponíveis para esse jogador comprador, havendo uma luta para definir a ordem de jogo, criando mais uma interactividade indirecta.

Então Nations é um eurogame de construção de civilizações. Isto, para alguns jogadores, pode ser por si só uma vantagem, para outros acredito que não. Outros potenciais pontes fortes são a sua simplicidade e tempo de jogo. Nations é relativamente simples quando comparado com outros jogos de construção de civilizações e joga-se me metade do tempo. Facilmente conseguimos jogar uma partida a três jogadores em duas horas. Não terá o nível de profundidade de outros jogos e as cartas disponíveis para comprar a cada turno podem introduzir alguma aleatoriedade capaz de prejudicar alguns jogadores, pois pode não haver o suficiente de determinado tipo para cada jogador seguir a estratégia que tinham delineado, no entanto há sempre muitas outras alternativas.

Nations pode ser bastante divertido quando começamos a analisar o percurso da nossa civilização, se considerarmos as combinações de edifícios, personagens, opções políticas e económicas que seguimos. Só isso pode valer a pena. Tematicamente o jogo até faz sentido entre os edifícios, personagens, eventos, maravilhas e guerras. Pode ser até pedagógico no modo como conta a história da humanidade, de uma forma alternativa que leva a um conhecimento para além do jogo. Os mais curiosos vão querer saber mais sobre aquelas cartas que vão aparecendo, embora isso não seja relevante para a vitória e para a dinâmica do jogo propriamente dito.
 
Jogo: Nations
Ano: 2013
Avaliador: Micael Sousa
Tipo: Gestão / Estratégia
Tema: Civilização
Preparação: 10 minuto
Duração: 120 - 150 minutos
Nº de Jogadores: 1 - 5
Nº Ideal de jogadores: 3
Dimensão: Grande
Preço médio: 60€
Idade: 14+

Qualidade dos Componentes: 9
Dimensão dos Componentes: 9
Instruções/Regras: 9
Aleatoriedade: 8
Replicabilidade: 10
Pertinência do Tema: 9
Coerência do Tema: 8
Ordem: 9
Mecânicas: 9
Grafismo/Iconografia: 7
Interesse/Diversão: 8
Interação: 7
Tempo de Espera: 8
Opções/turno: 9
Área de jogo: 8
Dependência de Texto: 7
Curva de Aprendizagem: 9

Pontuação: 8,36

sexta-feira, 3 de março de 2017

Jogos de Tabuleiro: uma atividade de elites? - Opinião por Micael Sousa


Uma elite pode ser uma “minoria social que se considera prestigiosa e que por isso detém algum poder e influência” (1), associar-se ao “que há de melhor e se valoriza mais numa sociedade” (1), ou então ser uma “minoria prestigiada constituída por aqueles que são considerados superiores” (2). Partindo destas definições, será que faz sentido falar nos jogos de tabuleiro como algo elitista ou destinado às elites?
Pintura mural de túmulo de Nefertari - 1298–1235 a.C

Pensando na comunidade de jogadores de tabuleiro, designers, empresas relacionadas com a fileira/mercado de jogos, não me parece que em nenhum desses casos os membros da comunidade se justaponham com as elites sociais. Nem com as elites económicas, nem culturais, nem políticas, nem intelectuais. Há pessoas que, de forma isolada, podem pertencer a estas supostas elites, mas, enquanto grupo, não me parece ser possível fazer uma relação direta com nenhuma delas.

Será que são os próprios jogadores de jogos de tabuleiro modernos que se gostam de autorreferenciar e autoassociar a esse conceito de elite? Talvez sim, mas talvez com algum fundamento em certos casos. Se uma elite é aquilo que há de melhor numa determinada área, actividade ou assunto, os jogos de tabuleiro modernos podem constituir uma elite prórpia, mas talvez somente dentro da própria comunidade. Isto é, ser jogador de jogos de tabuleiro modernos só por si não garante qualquer estatuto. O possível estatuto pode apenas ser possível dentro do grupo. Ou seja, uma elite social dentro de um grupo social já restrito de jogadores. Então será possível construir uma elite que se define pelo tipo de jogos que considera ser superior.

Tudo isto para dizer que não me parece que os jogos de tabuleiro modernos sejam uma coisa de elite. A variedade é tanta que é teoricamente possível encontrar um jogo à medida de cada pessoa. Logo, são uma actividade de potencial universal.

No entanto, há uma tendência para surgir da comunidade uma pequena elite, que privilegia determinados jogos e denigre outros. Diria que isto surge quando importamos sistemas de valores que são próprios de outros elitismos, nomeadamente o elitismo intelectual. Os jogos mais complexos, de mecânicas e designs criativamente polidos, em que alguns podem ser muito morosos e genialmente simples, tendem a associar-se às formas de elitismo extra-jogos para construir um elitismo dentro da comunidade de jogadores.

Não sendo os jogos de tabuleiro modernos coisa de elites sociais, dentro da comunidade formam-se elites sectoriais, um pouco à semelhança de quase todos os subgrupos, sendo o das artes o caso mais paradigmático, que só o é por aprovação dos seus próprios membros, praticantes e especialistas – a final a arte pode ser simplesmente aquilo que o grupo que com ela se relaciona e a produz considerar que é arte. Então podemos chamar a esse microgrupo dentro dos aficionados dos jogos de tabuleiro moderados de elite: os “gamers”.

Hoje em dia a comunidade de jogos de tabuleiro modernos parece mais aberta. Multiplicam-se as convenções, lojas e eventos associativos mais abertos e disponíveis para integrar novas pessoas. Geram-se alguns choques com os “gamers”, pois quando alguém entra no hobbie dificilmente passa de imediato a jogar os ditos jogos dos “gamers”. Aliás,  as pessoas que gostam de jogos de tabuleiro no geral podem nunca vir a jogar esse tipo de jogos, como acontece com algumas pessoas da comunidade à medida que se vai abrindo.

 Lembro-me quando comecei a entrar mais na comunidade. Lembro-me de perguntarem o que conhecia. Só jogava Catan na altura. De imediato me senti diminuído, embora isso talvez não tivesse sido intenção do “gamer” com quem falava. Agora dou por mim a fazer quase o mesmo. Mas como evitar esse defeito de suposta elite? Como dizer a uma pessoa que existem outros jogos e que são, supostamente melhores – porque a comunidade assim os considera – e mais evoluídos sem as ofender? Como fazer isso sem ter de contar toda a história e toda a dinâmica do hobbie?

Ainda existem grupos de “gamers” bastante fechados, quase misantrópicos, apesar do paradoxo, pois os jogos de tabuleiro modernos são uma coisa de comunidade e de grupos. Isto pode afastar algumas pessoas e aproximar outras, pela sensação de elite que dá ao hobbie. Provavelmente isto acontece em todas as atividades com o certo nível de especialidade, mas será inevitável? Havendo culpa, de quem será? Desses grupos que gostam de cultivar um certo estatuto ou das pessoas em geral que preferem o imediatismo de um lazer menos complexo e profundo? Talvez a resposta mais correcta seja que não é uma questão de culpa, mas de promover a diversidade e a oportunidade de cada pessoa conhecer todas a variedade de jogos que existem, podendo então depois fazer as suas escolhas de uma forma informada. Isto leva a novas questões e assuntos, sobre a necessidade da “evangelização” e sobre as atividades de intervenção que podem surgir através dos jogos de tabuleiro. Isso será tratado noutro texto que este já vai longo.
(1) Elite. Dicionário Priberan. Disponível em: https://www.priberam.pt/dlpo/elite
(2) Elite. Infopédia, Dicionários Porto Editora. Disponível em: https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/elite
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