sexta-feira, 3 de março de 2017

Jogos de Tabuleiro: uma atividade de elites? - Opinião por Micael Sousa


Uma elite pode ser uma “minoria social que se considera prestigiosa e que por isso detém algum poder e influência” (1), associar-se ao “que há de melhor e se valoriza mais numa sociedade” (1), ou então ser uma “minoria prestigiada constituída por aqueles que são considerados superiores” (2). Partindo destas definições, será que faz sentido falar nos jogos de tabuleiro como algo elitista ou destinado às elites?
Pintura mural de túmulo de Nefertari - 1298–1235 a.C

Pensando na comunidade de jogadores de tabuleiro, designers, empresas relacionadas com a fileira/mercado de jogos, não me parece que em nenhum desses casos os membros da comunidade se justaponham com as elites sociais. Nem com as elites económicas, nem culturais, nem políticas, nem intelectuais. Há pessoas que, de forma isolada, podem pertencer a estas supostas elites, mas, enquanto grupo, não me parece ser possível fazer uma relação direta com nenhuma delas.

Será que são os próprios jogadores de jogos de tabuleiro modernos que se gostam de autorreferenciar e autoassociar a esse conceito de elite? Talvez sim, mas talvez com algum fundamento em certos casos. Se uma elite é aquilo que há de melhor numa determinada área, actividade ou assunto, os jogos de tabuleiro modernos podem constituir uma elite prórpia, mas talvez somente dentro da própria comunidade. Isto é, ser jogador de jogos de tabuleiro modernos só por si não garante qualquer estatuto. O possível estatuto pode apenas ser possível dentro do grupo. Ou seja, uma elite social dentro de um grupo social já restrito de jogadores. Então será possível construir uma elite que se define pelo tipo de jogos que considera ser superior.

Tudo isto para dizer que não me parece que os jogos de tabuleiro modernos sejam uma coisa de elite. A variedade é tanta que é teoricamente possível encontrar um jogo à medida de cada pessoa. Logo, são uma actividade de potencial universal.

No entanto, há uma tendência para surgir da comunidade uma pequena elite, que privilegia determinados jogos e denigre outros. Diria que isto surge quando importamos sistemas de valores que são próprios de outros elitismos, nomeadamente o elitismo intelectual. Os jogos mais complexos, de mecânicas e designs criativamente polidos, em que alguns podem ser muito morosos e genialmente simples, tendem a associar-se às formas de elitismo extra-jogos para construir um elitismo dentro da comunidade de jogadores.

Não sendo os jogos de tabuleiro modernos coisa de elites sociais, dentro da comunidade formam-se elites sectoriais, um pouco à semelhança de quase todos os subgrupos, sendo o das artes o caso mais paradigmático, que só o é por aprovação dos seus próprios membros, praticantes e especialistas – a final a arte pode ser simplesmente aquilo que o grupo que com ela se relaciona e a produz considerar que é arte. Então podemos chamar a esse microgrupo dentro dos aficionados dos jogos de tabuleiro moderados de elite: os “gamers”.

Hoje em dia a comunidade de jogos de tabuleiro modernos parece mais aberta. Multiplicam-se as convenções, lojas e eventos associativos mais abertos e disponíveis para integrar novas pessoas. Geram-se alguns choques com os “gamers”, pois quando alguém entra no hobbie dificilmente passa de imediato a jogar os ditos jogos dos “gamers”. Aliás,  as pessoas que gostam de jogos de tabuleiro no geral podem nunca vir a jogar esse tipo de jogos, como acontece com algumas pessoas da comunidade à medida que se vai abrindo.

 Lembro-me quando comecei a entrar mais na comunidade. Lembro-me de perguntarem o que conhecia. Só jogava Catan na altura. De imediato me senti diminuído, embora isso talvez não tivesse sido intenção do “gamer” com quem falava. Agora dou por mim a fazer quase o mesmo. Mas como evitar esse defeito de suposta elite? Como dizer a uma pessoa que existem outros jogos e que são, supostamente melhores – porque a comunidade assim os considera – e mais evoluídos sem as ofender? Como fazer isso sem ter de contar toda a história e toda a dinâmica do hobbie?

Ainda existem grupos de “gamers” bastante fechados, quase misantrópicos, apesar do paradoxo, pois os jogos de tabuleiro modernos são uma coisa de comunidade e de grupos. Isto pode afastar algumas pessoas e aproximar outras, pela sensação de elite que dá ao hobbie. Provavelmente isto acontece em todas as atividades com o certo nível de especialidade, mas será inevitável? Havendo culpa, de quem será? Desses grupos que gostam de cultivar um certo estatuto ou das pessoas em geral que preferem o imediatismo de um lazer menos complexo e profundo? Talvez a resposta mais correcta seja que não é uma questão de culpa, mas de promover a diversidade e a oportunidade de cada pessoa conhecer todas a variedade de jogos que existem, podendo então depois fazer as suas escolhas de uma forma informada. Isto leva a novas questões e assuntos, sobre a necessidade da “evangelização” e sobre as atividades de intervenção que podem surgir através dos jogos de tabuleiro. Isso será tratado noutro texto que este já vai longo.
(1) Elite. Dicionário Priberan. Disponível em: https://www.priberam.pt/dlpo/elite
(2) Elite. Infopédia, Dicionários Porto Editora. Disponível em: https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/elite

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